A JUREMA SAGRADA DA PARAÍBA
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A JUREMA SAGRADA DA
PARAÍBA
Idalina
Maria Freitas Lima Santiago*
RESUMO
A cultura religiosa
popular paraibana, desde seus primórdios, recebeu forte influência das
tradições indígenas, especialmente no que se refere ao culto da jurema. Este
culto passou por um processo secular de trocas e reelaborações, tendo sido a
introdução da umbanda na Paraíba, em fins de 1960, um marco significativo
nesse processo aliado à mais recente influência do candomblé. Tais
reelaborações deram condições para a formação Umbanda cruzada com Jurema,
hoje o culto mais numeroso no referido Estado. O artigo apresenta elementos
do processo de reelaboração dos significados da jurema, dando ênfase aos
aspectos relacionadas as entidades espirituais. A pesquisa foi desenvolvida
no perímetro urbano que envolve as cidades de João Pessoa, Cabedelo, Bayeux e
Santa Rita, com acompanhamento sistemático em seis terreiros, além de visita
a outras dez casas religiosas. Trata-se de estudo descritivo analítico,
utilizando como recurso metodológico a história oral e a etnografia. A
despeito do processo de resignificação pelo qual passou o culto da jurema, a
matriz original indígena manteve-se fortalecida, expressa sobretudo nas suas
entidades espirituais, sendo estas as mais procuradas pelos clientes e
adeptos para os atendimentos de consultas.
INTRODUÇÃO
O culto da Jurema é uma prática religiosa de tradição indígena,
especialmente das tribos do Nordeste, vinculado à árvore do mesmo nome
(jurema), a qual possui seu habitat no agreste e caatinga nordestina. Durante
os períodos de grande estiagem, a jurema se destaca do resto da vegetação
nativa pelo fato de manter-se exuberante, resistente à falta de água.
A cultuação e utilização de partes desta árvore, durante os
rituais religiosos dos nativos brasileiros, pode ser constatada nos escritos
de Oliveira (1942 apud Bastide, 1985), Cascudo (1978), Herckmam (1982),
Nascimento (1994), Mota (1987) e Vandezande (1975), os quais referem-se à
confecção de uma bebida sagrada a partir da casca, tronco e raízes da
referida planta. Quando ingerida, acredita-se que tal bebida possui a propriedade
de transportar os homens para o mundo do além, possibilitando-os a
comunicação com os seres que lá habitam.
O culto da jurema difundiu-se dos sertões e agrestes nordestinos
em direção às grandes cidades do litoral, tendo o símbolo sagrado da árvore
da jurema, originado na cultura indígena, sincretizado-se com elementos da
magia européia, do catolicismo e da matriz africana, conforme já apontava
Cascudo (1978) e Bastide (1985). A partir desse amálgama de tradições,
formou-se o Catimbó na Paraíba, Recife, Maceió e Natal, caudatário,
sobretudo, dos rituais indígenas centrados na jurema (cf. Brandão e Rios,
1998). Nesse sentido, concordo com Nascimento (1994) quando considera o
Catimbó como variante de práticas mágico-religiosas cuja origem se
* Doutora em Ciências Sociais/Antropologia, pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Atua nas áreas de Ciências Humanas e
Ciências Sociais Aplicadas, especificamente nas sub-áreas de Serviço Social e
Antropologia. Professora convidada do Programa Regional de Pós-Graduação em
Desenvolvimento e Meio Ambiente (UFPB/UEPB) e professora titular do
Departamento de Serviço Social e Mestrado Interdisciplinar em Ciências da
Sociedade, da UEPB. QUALIT@S Revista Eletrônica.ISSN 1677-4280 V7.n.1. Ano
2008
localizaria em processos de transformação cultural,
experimentados por populações indígenas em contato secular com a sociedade
envolvente.
Em suas pesquisas, Fernandes (1938), tratando sobre a formação
do Catimbó, evidencia a existência na Paraíba de práticas feiticeiras de
1740, através de uma ordem régia endereçada ao governador da capitania,
informando que feiticeiros e índios foram presos e mortos por praticarem
magias condenadas pela Igreja Católica.
Em “Imagens do Nordeste Místico”, Bastide
(1945) afirma ser o Catimbó de origem índia, considerando como tradições
indígenas, nesse culto, o uso da defumação para curar doenças, o emprego do
fumo para entrar em estado de transe e a idéia do mundo dos espíritos, no
qual há casas e cidades. Refere-se a esse culto como sendo remanescente da
antiga festa da jurema, ritual comunitário que se realizava anualmente entre
as tribos indígenas do Nordeste, modificado em contato com o catolicismo e
com a passagem da organização tribal para outro tipo de organização, a partir
da desagregação da tribo em famílias dispersas no litoral.
Além da influência indígena, Bastide (1985) aponta também a
influência negra no Catimbó, tendo sinalizado a primazia dos negros bantos na
Paraíba e em Pernambuco, os quais se adaptaram à religiosidade indígena em
virtude de ela estar centralizada, como a sua, na descida do deus ao corpo
humano e subseqüente transformação da personalidade.
Cascudo (1978) trata o Catimbó como o mais
nítido exemplo do processo de convergência afro-branco-ameríndia. Foi esse
autor quem assinalou a influência da bruxaria européia na religiosidade
popular brasileira, perseguida pela inquisição, tendo aqui encontrado canais
de assimilação principalmente junto às populações negras e índias que também
possuíam seus rituais mágicos.
Na época de seus estudos, Cascudo (1978)
encontrava cerimônias de catimbó tratadas como sinônimo de ‘adjunto de
jurema’. Nesse “adjunto” – nome que significa reunião, sessão – havia a
prática de fazer e consumir a bebida da jurema em cerimônias. Em pesquisa no
arquivo do Instituto Histórico do Rio Grande do Norte, encontrou registros do
‘adjunto de jurema’ realizado por índios em 1758, como também nos escritos de
Henry Koster havia sido registrado um desses adjuntos em 1814. Adverte, assim,
que o mesmo processo índio, encontrado nos séculos XVIII e XIX, ainda
persistia no ano de 1933. Considera o cachimbo, o maracá, a farmacopéia e a
bebida da jurema elementos indígenas que persistiram no catimbó, atribuindo
ao negro a invocação com ritos e ritmos musicais.
Na descrição de uma cerimônia de Catimbó, ocorrida na festa do
Dia de Reis na Paraíba, Bastide (1985) faz referência ao uso da jurema
(palmeira tóxica do Nordeste) tanto através do chá de sua raiz - ajuá - como
do fumo de suas folhas e raiz dentro de um cachimbo, usado para incensar os
fiéis. Utilizavam o cachimbo ao contrário, isto é, colocavam a parte em que
se põe o fumo na boca, e pelo tubo soprava-se a fumaça em direção ao que se
desejava defumar (a fumaça usada como defumador). Registra, também, o uso do
maracá para ritmar as canções, a aguardente e o fumo, ofertados para os
espíritos encarnados nos fiéis, os quais apareciam como entidades caboclas,
índias e negras.
A missão de pesquisas folclóricas de 1938, organizada por Mário
de Andrade, então chefe do departamento de cultura do município de São Paulo,
possuía uma equipe de pesquisadores que tinha como objetivo coletar dados
sobre a cultura popular no Norte e Nordeste do país. Essa equipe encontrou na
Paraíba um número expressivo de catimbós, relatando nos seus diários a
existência de um forte núcleo catimbozeiro no município de Alhandra/PB
(Carlini, 1994). QUALIT@S Revista Eletrônica.ISSN 1677-4280 V7.n.1. Ano 2008
René
Vandezande (1975), estudioso do Catimbó existente na cidade de Alhandra-PB,
ressalta que o termo catimbozeiro era estritamente relacionado ao designativo
juremeiro, evidenciando que a denominação jurema fazia referência a um
elemento do Catimbó, a própria árvore da jurema, da qual se retiravam as
sementes, raízes, folhas e madeira para os preparos utilizados durante as
sessões de Catimbó.
A
partir das histórias de vida contadas pelos chefes de terreiros mais idosos
dos municípios que envolvem a grande João Pessoa/PB, pude constatar, através
de seus itinerários religiosos, suas vinculações iniciais ao culto da jurema
por volta da década de 1940, os quais se referem à existência naquele período
de práticas do catimbó, sem alusão a rituais de umbanda ou de candomblé∗.
Em meados do século XX, no Estado paraibano, ocorre a
aproximação do Catimbó com a Umbanda em virtude do movimento de expansão
desta pelo país. Assim, foi se delineando a Umbanda cruzada com Jurema como
resultado da junção dos rituais da tradição juremeira/catimbozeira com a
Umbanda trazida oficialmente para o referido Estado nos fins de 1960. Até
essa época predominava na Paraíba a prática do Catimbó, tratado como caso de
polícia. Os catimbozeiros ou juremeiros desejosos de se libertarem da pressão
policial aceitaram se engajar na estrutura da nascente Federação dos Cultos
Africanos do Estado da Paraíba, encampadora da doutrina umbandista. Contudo,
a forte influência da jurema se fez presente na reorganização sincrética dos
elementos religiosos da umbanda paraibana.
Compreendo
que a associação efetuada pela maioria dos religiosos entre os termos umbanda
e jurema, melhor dizendo, a inclusão que fazem da umbanda na jurema ou
vice-versa, é oriunda desse processo de introdução da umbanda no seio do
catimbó, ou jurema, processo esse que deu liberdade ao culto. Acrescente-se a
isso o fato, de anteriormente à legalização da umbanda no Estado, os catimbós
serem visualizados pelos setores dominantes como sinônimo de feitiçaria e
tratados com mais severidade pela polícia do que os poucos centros de umbanda
já existentes. Dessa forma, a adesão ao nome umbanda só traria benefícios,
mesmo que se continuasse a praticar a jurema/catimbó.
O
catimbó/jurema, incorporado ou incorporando os elementos da umbanda, tomou
feições umbandistas, - com suas especificidades, é claro, devido à forte
tradição da jurema indígena -, passando a ser identificado com esta. À medida
que os candomblés de tradição africana, ditos de nação “pura”, passaram a
permear o imaginário religioso paraibano, por volta de início de 1980, grande
parte dos religiosos passou a buscar nesses candomblés suas iniciações ou
renovações sem, contudo, abrirem mão de praticar a jurema. Dessa forma, os
rituais juremeiros/catimbozeiros, mesclados com elementos da umbanda,
continuaram a ser desenvolvidos ao lado das sessões dos orixás, próximas dos
preceitos rituais do candomblé.
Assim,
é comum encontrar nos terreiros de tradição afro-brasileira nos municípios de
João Pessoa, Bayeux, Santa Rita e Cabedelo, do Estado da Paraíba, duas linhas
centrais de culto envolvendo entidades e processos rituais distintos, o que
não significa dizer que não possa haver trânsito de algumas entidades entre
as duas linhas. Trata-se da linha da jurema, herdeira essencialmente dos
processos rituais do antigo Catimbó/Jurema, miscigenados com elementos da
umbanda, e a linha do orixá, que tem no candomblé sua fonte inspiradora.
Tem-se, assim, o culto
∗ O presente artigo é
fruto de pesquisas realizadas nos municípios de João Pessoa, Bayeux, Santa
Rita e Cabedelo, pertencentes ao Estado da Paraíba, envolvendo dezesseis
casas religiosas. Desta pesquisa resultou a tese de doutorado “ O Jogo do
Gênero e da Sexualidade nos Terreiros de Umbanda Cruzada com Jurema na Grande
João Pessoa/PB”, defendida pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, em 2001. QUALIT@S Revista Eletrônica.ISSN 1677-4280 V7.n.1. Ano
2008
da
jurema e o culto do orixá, os quais estabelecem sessões rituais e processos
iniciatórios distintos, envolvendo entidades, estátuas, quartos e objetos
designativos diferenciados.
O
culto à jurema é considerado a porta de entrada para a iniciação religiosa
dos adeptos. É tanto que, nos processos iniciatórios, os neófitos primeiro
passam pelos rituais da jurema para, em seguida, serem inseridos nos
preceitos do orixá. Dessa forma, podemos encontrar terreiros que só realizam
o culto da jurema, não sendo o chefe religioso considerado totalmente formado
na sua iniciação, restando-lhe sua feitura e consagração junto aos orixás. Contudo,
a maioria dos terreiros afro-paraibanos realiza a cultuação dos deuses orixás
e entidades da jurema, possuindo na sua dogmática as respectivas linhas já
citadas. Vale registrar o insignificante número de casas religiosas que só
cultuam os orixás, sendo os seus freqüentadores considerados praticantes do
“puro” candomblé.
Como
meu interesse aqui é ressaltar a presença do catimbó/jurema na religiosidade
afro-paraíbana, me deterei em apresentar os atuais traços característicos das
entidades juremeiras, considerando suas ressignificações a partir da junção
do catimbó/jurema com a umbanda, formando a umbanda cruzada com jurema, e
posteriormente desta com o candomblé.
ENTIDADES ESPIRITUAIS
As entidades louvadas durante as sessões rituais da jurema costumam
ser agrupadas em três módulos: as das matas, referentes aos Caboclos e
Índios; os Mestres, considerados os donos da ciência da jurema, e os
Pretos-velhos. Exu e Pomba-gira são entidades do panteão dos orixás, que
foram reinterpretadas no culto da jurema, atuantes no início das sessões.
Existe uma mística que perpassa a construção simbólica vinculada
especificamente ao mundo sobrenatural da jurema, mais próxima das tradições
indígenas, sua raiz primordial. Trata-se dos reinos ou cidades, espaços onde
habitam os espíritos (entidades) da jurema, reinos vinculados em certa medida
às árvores sagradas da jurema, em baixo das quais os adeptos realizavam o
culto do catimbó/jurema. As entidades juremeiras teriam passado pela
existência humana, tendo após sua morte os seus espíritos resididos nos
reinos encantados da jurema, conforme o depoimento a seguir:
(...) Todo sentido deste culto está relacionado à árvore
da jurema. Tudo que se deve fazer é, primeiramente, é em nome de Deus, é
claro, e da jurema. Que a jurema transmite força.[…] A jurema é uma árvore
sagrada porque todas as entidades tem que ser, quando se é passado, quando é
matéria que passa a espírito, vai para essa árvore […] permanecendo por sete
anos ao pé dessa árvore, chamando jurema, adquirindo sua ciência (Barros,
João Pessoa/PB).
Câmara
Cascudo (1978), tratando da mitologia que perpassava o catimbó existente na
cidade de Natal-RN, entre 1928 e 1949, época de suas pesquisas, já mostrava a
crença que os adeptos possuíam na existência de um mundo sobrenatural
dividido em reinos encantados. Os atuais chefes religiosos paraibanos que
cultuam a jurema costumam dividir estes reinos, ou cidades, em número de
sete, estando vinculados aos vários tipos de árvores da jurema:
As sete
cidades é assim: são porque tem jurema branca, jurema preta e jurema
vermelha, a jurema amarela. (...) A jurema branca é a primeira jurema que foi
uma jurema onde Nosso Senhor descansou debaixo dela, da sombra dela. (...) É
abençoada por Deus (Pai Zé de Ogum, Santa Rita/PB). QUALIT@S Revista
Eletrônica.ISSN 1677-4280 V7.n.1. Ano 2008
(...) A
jurema preta é que tem a maior falange de mestres e existe também a jurema
branca que já é uma grande falange de preto velho, porque é muito iluminada a
jurema branca. A jurema preta ela é mais complexa (Pedro de Ogum, João
Pessoa/PB).
A
maior valoração à jurema preta se dá pela sua capacidade de fazer o bem e o
mal, estando associada aos mestres. Por outro lado, acredito que as
propriedades bioquímicas dessa planta também sejam um fator de destaque em
relação às demais espécies. É de parte de suas raízes e tronco que são feitos
os vinhos de jurema para serem bebidos pelos adeptos, os quais acreditam no
poder curador e místico da planta, pois esta proporciona visões e sonhos de
outro mundo∗. Dessa forma, não
concordo com Bastide (1945: 207) quando ele afirma que “a força da jurema não
é uma força material, a do suco da planta, e sim uma força espiritual; a dos
espíritos que passaram a habitá-la”. São os dois componentes, material e
espiritual, que compõem a lógica da jurema.
As cidades não são, necessariamente, somente pés de jurema,
podem ser de outro tipo de árvore; na literatura (Aragão et al 1987) e em
alguns depoimentos dos religiosos entrevistados, encontrei referência a
árvores como o manacá, vajucá, aroeira, angico, junça ou jussá e catucá como
pés onde se fazem o culto da jurema. O presidente da Federação dos Cultos
Africanos da Estado da Paraíba me relatou sobre a existência de sete cidades
de jurema, sendo cada uma regida por um desses tipos de árvores, incluindo aí
a própria jurema. Ele tentou mapear estas cidades como pertencentes a várias
localidades distintas, todas do Nordeste: a jurema, a mais original e forte,
estando vinculada à região de Alhandra, na Paraíba, berço do culto; a junça
de Natal, Rio Grande do Norte; vajucá de Recife, Pernambuco; catucá de
Alagoas; angico de Sergipe; para aroeira e manacá, ele não soube identificar
as localidades.
As entidades da jurema são consideradas espíritos de mortos -
eguns, almas de mortos - pessoas que viveram, morreram e se incorporam nos
fiéis, tendo como sustentação mística a interpretação kardecista da
reencarnação. Em seu conjunto são consideradas espíritos terra-a-terra, em
nível abaixo dos orixás dentro da hierarquia astral, posto que são as únicas
que podem fazer o mal.
Em
jurema não tem santo, né? Em jurema não existe santo, existe egum. Egum são
os Mestre que trabalha com a gente(...). Mestre que já foram passado pela
encarnação, já foram vivo, é morto; quando este Mestre baixa em uma pessoa
pra trabalhar, nós não temos ele como santo, nós temos ele como egum,
chama-se egum. Mestre de jurema são todos eles eguns, nenhum é santo. Todos
são eguns (Mãe Joana, Bayeux/PB).
As concepções sobre os orixás variam: alguns os consideram como
não sendo espíritos de mortos, mas Deuses africanos que representam forças da
natureza, não se incorporando nos médiuns; outros os vêem como babalorixás e
ialorixás que já viveram e morreram na África, ou na Bahia, não se incorporando
também nos fiéis devido ao seu elevado grau de purificação, já que morreram
há bastante tempo; há ainda a perspectiva que os relaciona aos santos
católicos, no já conhecido sincretismo afro-católico. As divindades orixás,
na maioria das casas, não se
∗ Das pesquisas sobre as
propriedades químicas da jurema, Vandezande (1975), Mota (1987), Batista
(apud Cabral 1997) confirmaram a existência de efeitos narcóticos na jurema
preta. QUALIT@S
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incorporam nos médiuns. Acredita-se que a energia do orixá seja
tão forte que nenhum médium possa incorporá-lo. Daí, o orixá entrar em
contato com seu cavalo por intermédio de um espírito da sua falange, sendo na
maioria Caboclos, fáceis de serem associados aos orixás pela identificação
com os domínios da natureza - selva, cachoeira, água, pedreira - e por não
falarem∗.
As entidades da jurema são as que efetivamente executam os
trabalhos, curas, através das consultas. Os orixás, pela sua pureza, não têm
condições de realizá-los. Dessa forma, são as entidades juremeiras as mais
solicitadas para praticarem o seu famoso catimbó.
Um marco distintivo entre as entidades da jurema e os orixás
está relacionado à condição de fala, uma vez que as juremeiras quando se
incorporam nos filhos já se apresentam falando, enquanto os orixás precisam
de uma preparação, falando pouquíssimo, às vezes só anunciando seu nome:
O
Caboclo, ou o Preto-velho, ou qualquer uma nação indígena que pertencer à
jurema, como todos pertence, eles vêm fala logo. Eles vêm logo falando,
dizendo “louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”, pertence do guia e tal e
coisa, enfim.(...) Aí dali quando vem ele já vem falando mesmo e os Caboclo,
os Mestres, os preto velho é a mesma falange e o orixá num é assim. Orixá é
preciso fazer obrigação pra ele, o médium, deitar a cabeça com muito carinho,
com muito amor, com muito respeito, com muita personalidade pra o axé dele de
fala que chama-se o poder da pemba falar, depois é que eles começa a falar
alguma coisa muito baixo, num é alto. Com a continuação eles vai falando e
aquele axé chama-se o axé de fala. A diferença é essa (Pai Zé de Ogum, Santa
Rita/PB).
Eles
[os orixás] falam quando tem axé de fala, né?, quando a gente bota o filho de
camarinha [iniciação] que tira o filho e vai dá axé de fala. É quando o orixá
fala. Vai dizer a digina [nome] dele, vai dizer quem é, quando chega (Joana
D’Arc, João Pessoa/PB).
Outro marco que diferencia as entidades da jurema e dos orixás
são as vestimentas usadas pelos fiéis durante as sessões litúrgicas. Para a
jurema costumam usar branco e estampado indistintamente para as entidades, enquanto
para os orixás usam cores específicas para cada um deles.
Porque a jurema é uma ciência, né? é uma ciência. É mais
verde, estampado e branco. As matas são verdes, né?, as águas cristalinas são
brancas, então a gente usa o estampado por causa dos Caboclos, né? e o branco
por causa das águas cristalinas, né? Então a gente faz saias estampadas
[flores e folhas] e blusas brancas para as mulheres, e homens todo de branco.
Para orixá, as cores são : Xangô é vermelho e branco ou todo vermelho, a
Iansã é rosa e branco, a Oxum é amarelo e branco, Iemanjá azul e branco, Odé
verde e branco e Ogum verde e vermelho, Oxalá todo branco, Nanã boroquê é
roxinho e Obaluaê é marron. Cosme e Damião é rosa, verde e branco e pode ser
todas as cores, é colorido (Joana D’Arc, João Pessoa/PB).
Existe, ainda, a grande diferenciação entre as entidades do
orixá e da jurema relacionada ao uso de bebidas alcoólicas e fumo. Enquanto
as primeiras não permitem cigarros, cachimbos,
∗ As entidades louvadas
nas sessões dos orixás são características dos candomblés iorubás/bantos,
sendo os mais reverenciados os seguintes orixás: Exu, Ogum, Oxossi, Odé,
Xangô, Nanã, Obaluaê, Oxum, Iansã, Ibejins, Iemanjá e Oxalá. QUALIT@S Revista
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charutos e bebidas durante as sessões rituais, as da jurema só
se incorporam e trabalham mediante o uso de tais materiais - quanto mais
fumaça mais firmeza para as entidades juremeiras. Nas sessões para os orixás,
algumas casas permitem nas saudações a Exu e Pomba-gira, no início do ritual,
a utilização de fumo; terminadas essas homenagens se interdita o fumo até
para os visitantes.
É
porque a jurema trabalha com a fumaça, trabalha...com emolocô, e orixá não
quer fumaça. Ele é muito lento, muito livre. E a jurema é mais reforçada, tem
mais...é mais reforço e o orixá é muito compassivo (Pai Zé de Ogum, Santa
Rita/PB).
(...)
porque é onde tá a força do Mestre: no cachimbo dele, né ? A firmeza dele são
os cachimbos (Mãe Joana, Bayeux/PB).
Feitas essas diferenciações entre as entidades que compõem a
linha da jurema e a do orixá, passarei agora a me deter nas entidades
juremeiras, marca distintiva da influência do catimbó/jurema na religiosidade
em questão.
MESTRES: No antigo catimbó, o
Mestre era o chefe responsável pela direção do culto, pessoa que recebia os
espíritos invisíveis de outros Mestres já mortos. Segundo Fernandes (1938:
92), “os Mestres seriam os espíritos de grandes catimbozeiros mortos, que
presidem os ofícios conjuratórios, reinando sobre os elementos naturais e de
poder de obediência entre os demônios, aos quais deveriam manejar para fins
hostis individuais”.
Em Alvarenga (1949: 9) encontrei a conceituação de Mestre como
entidade sobrenatural, “creações míticas que freqüentemente têm a designação
caboclo (índio) anteposta ao nome, ou divinizações de falecidos chefes de
cultos”. A autora refere-se aos sacerdotes do culto como também possuidores
da denominação Mestre.
Outros autores especializados no antigo catimbó (Vandezande
1975; Carline 1993; Bastide 1985; Cascudo 1978) apontam o Mestre como a
figura central desse culto, tanto como designativo do chefe da casa
religiosa, quanto como entidade principal do culto. Atualmente, o chefe
religioso não é comumente chamado de mestre, nem de juremeiro, e sim pai ou
mãe-de-santo, passando a designação Mestre significar com mais evidência a
entidade incorporada, a qual possui notório prestígio dentro do culto.
Como pude observar, o dia determinado pelo calendário religioso
para homenagear a entidade Mestre é 15 de outubro, data também consagrada aos
mestres/professores da sociedade mais ampla, uma “coincidência” um tanto
quanto significativa, uma vez que as entidades Mestres são consideradas
detentoras especiais da “ciência”∗ da jurema,
outorgando-lhes o domínio espiritual sobre os saberes da jurema, o que
implica ter conhecimentos secretos e amplo saber sobre as ervas de curas.
Dessa forma, a denominação Mestre também é usada como distintivo de sabedoria
e maior conhecimento espiritual, podendo um Preto/a-velho/a vir a ser um/a
Mestre/a ou uma Pomba-gira uma Mestra quando estes se destacam das demais
entidades que compõem suas falanges, sendo-lhes outorgado mais prestígio,
poder e hierarquia.
Os atuais Mestres podem se incorporar nos adeptos como Zé
Pilintra, Baianos, Boiadeiros, Príncipes, Cangaceiros, Ciganos, Vaqueiros,
dentre outros. Os Mestres da jurema
∗ Possuir Ciência para os
juremeiros significa conhecer as palavras secretas, o nome das plantas
medicinais que cada entidade usa, as orações e músicas necessárias para que
seja possível a comunicação com o mundo do além. QUALIT@S Revista
Eletrônica.ISSN 1677-4280 V7.n.1. Ano 2008
paraibana aglutinam grande parte das entidades da umbanda
paulista e carioca que realizam consultas, especialmente o Zé Pilintra,
Baianos e Boiadeiros.
Vejamos os nomes de alguns Mestres e Mestras presentes nos
terreiros pesquisados: Carlos, Sibamba, Chapéu Amarelo, José de Alencar, Zé
Pilinta, Zé de Aguiar, Zé da Ladeira, Aurora, Zé Moringa, Chapéu Virado,
Laurinda, Antônio, Zé da Pinga, Zé Vaqueiro, Zé do Beco, Zé do Tesouro, José
do Coqueiral, Zé das Almas, Zé Pretinho, Zé Barreira, Pé de Serra, Maria do
Acais, Joana Pé-de-Chita, Amélia de Lima, Aroeira, Zé Menino.
Tão grande é a importância do Zé Pilintra no culto da jurema que
ele chega a ter uma falange própria dentro da corrente dos Mestres. Existem
várias versões para o nome do primeiro Zé que deu início à falange do Zé
Pilintra: para alguns religiosos, foi o próprio Zé Pilintra; outros falam em
José Gomes da Silva ou, ainda, José Filintra de Aguiar. Alguns religiosos
afirmam que José de Aguiar, ou Zé Pilintra, teria nascido no município de
Alhandra/PB, sendo enterrado no cemitério da cidade de Goiana/Pe, tendo
ficado conhecido pela sua fama de beber muito, fazer besteiras, ser boêmio e gostar de
mulheres. Tais características são amplamente evidentes durante as
incorporações dos mestres, sobressaltando seu estado de embriaguês. A
propósito de Zé Pilintra, é pertinente o seguinte depoimento:
Zé Pilintra foi o primeiro mestre a arriar na linha de
Zé, foi ele que abriu, inaugurou, num é? foi o pioneiro da falange, o dono da
falange de Zé, em Alhandra no Estado da Paraíba. .(...) Zé Pilintra ele não
arreia mais, nós temos hoje a falange de Zé Pilintra. Zé Pilintra coroou.
Quando o mestre coroa, que ele tem muitas caridades feitas e muitas curas,
eles não arreiam mais em cavalo nenhum.(...) a falange de Zé, toda a falange
de Zé Pilintra - que é Zé Boiadeiro, Zé da Ladeira de Ouro Preto,que é o meu
Zé, Zé Gato Preto, Zé Bebinho, Zé de Alencar, Zé de Aguiar, é...., Zé de
Nana, Zé Sete Encruzas, Zé do Beco, tem todos os Zés. E o nome do Zé é aonde
ele se passou. O meu Zé passou-se no pé de uma ladeira, com sete facadas,
morto por um filho de uma vítima dele em vida. Zé Sete Encruzas passou-se
numa encruzilhada, Zé do Beco passou-se em um beco, Zé Boiadeiro passou-se no
trabalho dele, com a boiada, em terra. Zé Bebinho passou-se num bar (Pedro de
Ogum, João Pessoa/PB).
Uma outra característica do Mestre está relacionada a seu
trânsito nas esferas que praticam o bem e o mal. O pai-de-santo Jonas
(Bayeux/PB) informa que os Mestres trabalham tanto para esquerda como para
direita, fazendo o traçado com Exu : “Porque o Mestre, o Mestre, ele, depois
de meia noite, ele vira Exu, né? O Zé Pilintra, é...o Zé Baiano, Zé de
Aguiar, Zé Aroeira, Zé Boiadeiro, depois de um certo tempo, de meia noite, aí
ele vai se transformando em Exu” .
Concordo com Assunção (1999) sobre o processo de reelaboração
dos símbolos e significados do antigo catimbó quando do encontro com a
umbanda e com o candomblé, exemplificando através do caso dos Mestres que
passaram a ser associados aos Exus. Segundo depoimentos dos religiosos por
mim entrevistados, a proximidade dos Exus com os Mestres se dá pelo fato de
os primeiros serem considerados entidades do panteão dos orixás que passeiam
pelos dois mundos, o das divindades e o dos mortos, sendo o orixá mais
próximo dos humanos. Exu é possuidor de uma moral fluida que tanto beneficia
como pode prejudicar uma pessoa, aproximando-se da identificação com os
Mestres, que são espíritos de humanos mortos, praticantes do bem e do mal.
Vemos, assim, que não foi difícil associar as características
dos Exus às dos Mestres catimbozeiros. Zé Pilintra é um exemplo claro dessa
reeleboração. Na umbanda carioca e paulista QUALIT@S Revista Eletrônica.ISSN
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ele é considerado Exu, guia de atendimento de consultas e
limpador de demandas, conforme estudos de Negrão (1996) e Trindade (1982).
Nos terreiros acompanhados por mim, Zé Pilintra é Mestre que se transforma em
Exu após a meia noite ou nas horas grandes, como são tratados os horários das
seis da manhã e da tarde, das doze e das vinte e quatro horas. Os Exus nessas
casas exercem a função de cuidar das entradas e saídas, à semelhança das
atribuições que essa entidade possui no eixo Rio/São Paulo. No entanto, na
Paraíba, ele não tem a atribuição de atender consultas, prerrogativa dada aos
Mestres.
O religioso Pedro de Ogum (João Pessoa/PB) tem uma visão
esclarecedora sobre esse assunto. Conforme aponta, as umbandas do Rio de
Janeiro, que não cultuam jurema, utilizam Exu como entidade de consulta. Na
umbanda cruzada com jurema paraibana, os Exus homens não travam conversas com
os fiéis, sua função precípua é limpar os terreiros das demandas. Somente
Pomba-gira (Exu fêmea ) exerce essa tarefa, ao lado dos Mestres e Pretos-velhos,
entidades que realizam consultas.
Com relação à Pomba-gira, a consorte de Exu - para alguns, sua
mulher; para outros, o Exu fêmea - encontrei com freqüência a associação
dessa entidade com as Mestras, não sendo, contudo, uma visão unânime entre os
religiosos. Podemos supor que essa associação pode ter vindo em decorrência
da vinculação dos Mestres com os Exus, conforme já vimos, estabelecendo-se,
conseqüentemente, associações semelhantes entre as categorias femininas
dessas entidades, no caso Pomba-gira e Mestra. Uma outra possível explicação
está vinculada ao fato do designativo Mestra outorgar àquela Pomba-gira uma
diferenciação em relação às demais entidades da falange, sinônimo de maior
conhecimento e poder dentro das leis espirituais.
Pedro de Ogum (João
Pessoa/PB) faz distinção entre as Pombas-giras que participam da corrente do
orixá e da jurema. No orixá, ela apenas limpa demanda sem fazer trabalhos nem
atendimento aos filhos, enquanto na jurema tem ampla participação, sendo uma
das entidades mais concorridas para aconselhamentos, principalmente no
referente às questões amorosas.
Os juremeiros que vivenciaram o processo de introdução da
umbanda e do candomblé na religiosidade paraibana, especialmente no catimbó,
fazem uma leitura sobre o pertencimento de Exu e Pomba-gira às sessões de
jurema como proveniente da influência do candomblé.
Como bem salienta pai
Valdevino (João Pessoa/PB), “(...) Exu e Pomba-gira isso não pertence a
jurema. Os dois pertence à parte do orixá. Já porque depois do assunto de
transportarem do candomblé, misturaram. Mas antigamente não existia”. Esse
assunto sobre o candomblé, a que se refere Valdevino, diz respeito à entrada
do culto do candomblé na Paraíba, modificando os rituais da jurema/catimbó
que já havia incorporado elementos da umbanda.
CABOCLOS/ÍNDIOS: A visão mais comum
entre os religiosos é de que os Caboclos e Índios são espíritos de mortos:
Os Caboclo são pessoas da mata que já desencarnaram,
naquele tempo daquele povo que vivia na mata, Índios, né? Que já morreram e
ficou os espírito dele, encarnado na mata. Aí eles anda à procura de luz, à
procura de...o que eles comia eles incorpora na gente pra poder comer. Que
eles não são mais matéria pra comer, aí eles incorpora na gente pra poder
comer (Jonas, Bayeux/PB).
Os Caboclos e Índios, quando incorporados, bebem mel colocado em
folhas sobre o chão, comem carne bovina crua embebida em mel e vinho, além de
frutas, tendo predileção por vinho, em vez de cachaça como preferem os
Mestres. São pouco faladores, não atendem consultas; soltam gritos de guerra,
empunhando arcos e flechas nas mãos, quando incorporados. Seu linguajar é
pouco entendível, puxado para o tupi-guarani: QUALIT@S Revista
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O Mestre é mais fácil a falange de falar do que mesmo os
Caboclo, que eles são um pouco introduzido da linguagem deles, tem uns que
fala que a gente não entende, mas tem uns que a gente entende quase nada (Pai
Zé de Ogum, Santa Rita/PB).
A presença do Caboclo na religiosidade afro-brasileira é uma
marca distintiva da influência indígena na nossa cultura. Tanto os catimbós
nordestinos, umbandas do centro/sul, candomblés de caboclos na Bahia, tambor
de mina no Maranhão, batuque no Pará e até mesmo candomblés baianos que se
rogavam a pureza nagô/queto costumavam cultuar algum tipo de Caboclo.
Os Caboclos e Índios hoje cultuados nas sessões de jurema na
Paraíba são caudatários, sobretudo, do antigo catimbó. Contudo, não descarto
as influências das demais religiões que cultuam essa entidade, especialmente
a umbanda paulista e carioca, na composição simbólica dos elementos da jurema
paraibana.
Nos catimbós de Alhandra, estudados por Vandezande (1975), além
das sessões de mesa, onde se prestava atendimento de consulta, havia também
os torés de Caboclos e Mestres. Pelo registrado nas transcrições de
Vandezande, verifiquei que nas mesas de catimbó as entidades que desciam para
trabalhar eram Mestres relacionados a antigos catimbozeiros da região, já
falecidos. Nos torés de Caboclos, onde não havia atendimento de consultas, só
“divertimento”, as cantorias estavam voltadas para os Caboclos e Índios,
sendo identificada entre elas as Tapuias Canindés e Caboclas de Pena,
bastante conhecidas nas atuais sessões de jurema.
Os Caboclos da umbanda
paulista pesquisados por Negrão (1996) são espíritos de índios, guerreiros,
curadores, conhecedores dos segredos das ervas. Apesar do quase consenso
sobre a natureza boa dos Caboclos, existem os que não são tão bons,
trabalhando com demandas. Informa Negrão que essas entidades possuíam fala
também complicada, mas realizavam consultas.
Das características apontadas por Negrão sobre o Caboclo
cultuado nas umbandas paulistas, algumas não se enquadram nos Caboclos que
freqüentam as juremas paraibanas. A principal delas se refere ao atendimento
de consulta, não sendo uma tarefa executada pelos Caboclos e sim por Mestres,
Pretos-velhos e Pombas-giras. Apesar de os Caboclos terem o poder da fala,
comunicam-se muito pouco com as pessoas, não realizam trabalhos de demandas e
consultas - nas casas visitadas, nunca vi um Caboclo ou Índio ser chamado
para realizar qualquer trabalho. Observei que o negro Gerson aparece nos
escritos do citado autor como Caboclo, entretanto na Paraíba ele é cultuado
como Mestre.
Os religiosos entrevistados não fazem distinção entre Caboclos e
Índios no referente a considerarem os primeiros mestiços de índios com
brancos ou pretos e os últimos os representantes legítimos da raça autóctone.
Para os religiosos Caboclos e Índios são sinônimos, possuem as mesmas
características inclusive na maneira como se apresentam nas incorporações.
Entretanto, estabelecem prioridade para as cantorias destinadas aos Caboclos,
iniciando os cânticos em louvação para o chefe da falange dos Caboclos, o
orixá Oxossi, para depois homenagear os Índios no final da seqüência das
entidades das matas.
Além dos Exus, foram transportados para os rituais da jurema, e
reinterpretadas, as entidades do panteão dos orixás que se aproximavam das
características eminentes a esta corrente, no caso o orixá Oxossi, por ser
caçador, e Ossâim, ligado às florestas e plantas medicinais, agrupando-os
entre as entidades da mata. Oxossi assume uma posição de prestígio dentro da
jurema, sendo a entidade com a qual se iniciam as louvações para o povo das
matas, QUALIT@S Revista Eletrônica.ISSN 1677-4280 V7.n.1. Ano 2008
ritualística herdada da dogmática da umbanda na qual Oxossi,
entidade espiritual em plano superior de evolução, comanda a falange dos
Caboclos.
Os(as) Caboclos(as) são identificados por suas descendências
tupi e tapuia, nações indígenas predominantes no Estado paraibano (Cabocla
Jurema, Tapuia, Iracema, Rei Canindé); por adereços indígenas (Cabocla de
Pena, Caboclo Pena Branca, Pena Vermelha, Sete Flechas, Flecheiro); e por
referências a elementos da natureza ( Caboclo Mata Virgem, Folha Verde).
Dentre as caboclas, quero destacar a Comadre Fulozinha, figura lendária na
cultura popular paraibana, considerada uma velha cabocla que toma conta das
matas, controlando as caçadas.
Cumade
Fulozinha ela é a rainha das mata; ela é a rainha, uma rainha das mata, é uma
Cabocla (...) Ela é uma Cabocla, o cabelo dela, olhe! cobre ela todinha, é
linda ela! Tem gente que vê ela, tem gente que vê assim. Eu nunca vi não. O
assobio dela eu ouvi.(...) Assobia. Braba! Braba! (Tita, Bayeux/PB).
Os fiéis acreditam que
o assovio desta entidade, indicando sua presença, é um sinal de advertência,
pois ela pode dificultar a realização de qualquer ação dentro da mata, como,
por exemplo, atrapalhar uma caça - o caçador não conseguir acertar no animal.
PRETOS-VELHOS: A primeira reflexão que
fiz sobre o pertencimento dos Pretos-velhos à vertente da jurema me levou a
debitá-la à influência da umbanda, uma vez que esta é possuidora dessa
entidade dentro do seu quadro doutrinário. Entretanto, outra análise pode ser
feita tomando como referência os estudos de Cascudo (1934, 1978), datados a
partir de 1929, onde ele encontrou catimbós no Nordeste presididos por
negros, época em que a umbanda não se fazia presente no imaginário religioso
nordestino. Referencia a cultura negra banto como a que se introduziu na
faixa da Paraíba e Rio Grande do Norte, tendo esses povos se juntado ao índio
e branco europeu para processos de bruxarias. Nos catimbós estudados pelo autor,
encontrou negros velhos mestrando o culto, com nomes de descendência
angolana: Negro do Congo, Pai Angola, etc.. Conforme salienta o mesmo autor:
“O ‘Caboclo velho’ e o ‘negro velho’ são os lados de um ângulo cujo
vértice é o ‘Mestre’ do catimbó” (Cascudo 1978, p.90-91).
Em “Novos Estudos
Afro-brasileiros”, Cascudo (1934) lista e comenta sobre os principais Mestres
encontrados nos catimbós naquela época, chamando-me atenção dois deles, Pai
Joaquim e Pai João, figuras bastante presentes nos atuais culto da Jurema,
exercendo o prestígio de serem os patronos das casas, sendo nessas
considerados Pretos-velhos e não Mestres, incorporando-se nos fieis durante
as cantorias para os Pretos e não para os Mestres. Contudo, como ressalta
Hosana, filha-de-santo de Pai Zé de Ogum: “ele vem na linha de Preto, mas
pode trabalhar como Mestre”. Como já assinalei, o designativo Mestre para uma
entidade é representativo de maior conhecimento da ciência da jurema.
Parece-me que, na reorganização simbólica do catimbó com umbanda,
essa possuidora de uma falange específica de Pretos-velhos que atendiam
consultas, os velhos Mestres negros catimbozeiros foram alocados na linha dos
Pretos-velhos, passando a ser chamados assim, sem, contudo, deixar de exercer
a maestria que possuíam se juntando aos Pretos trazidos pelo culto da
umbanda.
Os(as) Pretos(as)-velhos(as) são espíritos de
negros escravos que padeceram muito durante o período da escravidão,
associados à compreensão, bondade e humildade, trabalhando para consolar os
aflitos, reanimar os fracos, valorizando o sofrimento humano como força
transformadora, através da resignação e da coragem para enfrentar a dor e o
sofrimento. Nesse QUALIT@S Revista Eletrônica.ISSN 1677-4280 V7.n.1. Ano 2008
sentido, praticam a caridade, rezam muito,
apresentando-se com um rosário pendurado no pescoço. Além dessas virtudes, os
Pretos são bastante identificados com temidos curandeiros e quimbandeiros,
praticantes de processos de bruxarias e magias, possuidores de muita
sabedoria oculta.
Os
preto-velho são pessoas velha, de cativeiro, aquelas pessoas antigas que
foram acorrentados, né? que foram do tempo dos escravo, que naquele tempo já
tinha já bruxaria, naquele tempo. E já trabalhavam fazendo bruxaria. Então
são aqueles povo, aquele povo que morreu e que incorpora na gente. Gente,
aquelas pessoas de cativeiro (Jonas, Bayeux/PB).
A reorganização das entidades da umbanda nas atuais linhas da
jurema, compostas de Caboclo e Índio (povo da mata), Mestre e Preto-velho,
não se restringe somente aos Caboclos, Boiadeiros, Ciganos e Exus que foram
reagrupados como Mestre, conforme já demonstramos. Nessa mesma direção, os
Baianos passaram a fazer parte da linha dos Pretos-velhos, entendendo-se que
as entidades Baianos são ex-babalaôs e ex- pais-de-santo que morrerem na
Bahia e ‘arreiam’ (se incorporam) na linha de jurema.
Conforme
se pode constatar nas análises anteriores, a matriz original indígena
manteve-se fortalecida, expressa sobretudo nas entidades espirituais da
jurema, as quais são as mais procuradas pelos clientes e adeptos para os
atendimentos de consultas, prerrogativa atribuída especialmente aos Mestres e
Pretos-Velhos. No processo de reorganização sincrética entre as entidades da
jurema, da umbanda e do candomblé, vemos o movimento em direção de
fortalecimento da chamada linha da jurema, na medida em que as entidades do
panteão das duas últimas religiosidades (umbanda e candomblé) foram
resignificadas para serem agrupadas em torno da dogmática juremeira.
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