sexta-feira, 13 de maio de 2011

Psicologia USP
Print ISSN 0103-6564


Psicol. USP vol.14 no.1 São Paulo 2003
Curriculum Lattes


How to cite this article



Raízes da Jurema1

Roots of Jurema

Racines de Jurema


José Francisco Miguel Henriques Bairrão2
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP


________________________________________
RESUMO
Neste artigo pretende-se subsidiar reflexões sobre o significado de "conhecer" na cultura popular. O intuito é trazer o aroma da Jurema para a discussão sobre a problemática do conhecimento. Formas populares de cognição são refletidas a partir da persistente e multifacetada presença da Jurema no imaginário brasileiro. As suas raízes, botânicas e étnicas, refugiam-se fora do território "cultivado", preservando troncos vegetais e semânticos do culto de caboclos. Descrevem-se processos de semiose imanentes a esta seiva "selvagem" da brasilidade e discute-se a sua importância para a compreensão de processos de cognição social e para uma interlocução dialógica com o saber dito popular.
Descritores: Imaginação. Representação social. Cognição social. Práticas religiosas. Psicologia Social.
________________________________________
ABSTRACT
This article intends to subsidize reflections on the meaning of "knowing" in "popular" culture. The aim is to bring Jurema’s scent for the discussion on the problem of knowledge. Forms of popular cognition are reflected based on the persistent and multifaceted Jurema’s presence in the Brazilian imaginary. Its roots, botanical and ethnic, remain out of the cultivated area and preserve vegetable and semantic trunks of the "caboclos’ cult". The article also describes processes of semiosis immanent to this Brazilian wild lushness and discusses their importance to the study of social cognition and to a dialog with popular knowledge.
Index terms: Imagination. Social representation. Social cognition. Religious practies. Social Psychology.
________________________________________
RÉSUMÉ
Cet article veut apporter des réflexions sur la signification de « connaître » dans la culture populaire. L’intention est d'apporter l'arôme de la Jurema dans la discussion sur la problématique de la connaissance. Des formes populaires de cognition sont réfléchies à partir de la présence persistante et à facettes multiples de la Jurema dans l'imaginaire brésilien. Ses racines, botaniques et ethniques, se réfugient en dehors du territoire « cultivé », en préservant des troncs végétaux et sémantiques du culte des caboclos (paysans.) On décrit des processus de ses méioses immanentes à cette sève « sauvage » de la brasilianité et on discute de son importance pour la compréhension des processus de cognition sociale et pour l'échange de dialogue avec le savoir «populaire».
Mots-clés: Imaginaire. Représentation. Cognition sociale. Religion. Psychologie sociale.
________________________________________


Qualquer tomada de partido a respeito da dignidade das construções do imaginário social como cognições tem implicações éticas e repercussões políticas. Define uma pré-concepção do lugar do sujeito popular relativamente ao poder de conhecer, bem como se, e em que medida, é reconhecido como interlocutor ou é reduzido a objeto de análise (na maioria das vezes) para reafirmar a superioridade da cultura das elites, em vez do reconhecimento das diferenças.
Na contramão da tendência a achatar o saber aos resultados da crença no cérebro e nas neurociências - e no bojo da crise contemporânea da noção de representação - aposta-se no interesse em dar ouvidos à voz do povo para trazer elementos para uma reflexão sobre o conhecer (correndo o risco de ouvir Deus, conforme o ditado, mas, pelo menos, em forma de bela e sensual mulher).
Os pressupostos são três teses psicanalíticas (lacanianas): o pensar não se subordina ao controle consciente dos usos da linguagem; reflexões sutis e complexas podem ser pensadas e ditas à revelia da consciência, não dependendo nem da "erudição" nem da "inteligência"; e o inconsciente formula-se como linguagem - o que permite deslocar a sua pertinência do âmbito da interioridade psíquica para a esfera pública dos processos semióticos, abrindo novas possibilidades de utilização da Psicanálise na Psicologia Social.
Após uma sumária apresentação da problemática da representação, tal como histórica e epistemologicamente se configura, procede-se a uma descrição das formas de incidência da Jurema no universo brasileiro (no intuito de esclarecer se, e em que medida, se mostram incompatíveis com o modelo representativo). Argumenta-se que o uso da noção de representação, no contexto empírico da pesquisa social e psicológica, pode inviabilizar um conhecimento mais profundo e fiel da realidade humana brasileira. Defende-se que a mudança de perspectiva sugerida não compromete (pelo contrário, ressalta) o conhecimento, tão somente implicando numa redistribuição e democratização do poder de saber.

Entroncamentos da crise da representação
Uma contribuição fundamental para o exame da representação no mundo moderno, indubitavelmente, é devida a Heidegger (1949/1962). Para ele, nos tempos modernos, o existente só se concretiza na representação e só assim se torna existente, ou seja, torna-se disponível para a representação como objeto. A sua análise mostra como, especialmente a partir de Descartes, o mundo se torna imagem, e o homem, sujeito. O ser próprio das coisas é reduzido à forma da sua apresentação para o sujeito humano. O mundo se transforma em imagem e o homem é representado junto com o mundo (Behnke, 1994). Ser é ser representado. Nesse quadro, o não representado puramente inexiste. Há uma hipertrofia do sujeito e da consciência, concomitante a uma redução do mundo ao objetivamente representável.
Depois de um período de exacerbação desse entendimento na época moderna, progressivamente a sua confiabilidade vai sendo posta em cheque.
A crítica fenomenológica à separação entre a consciência e os seus conteúdos (e a crise em geral do dualismo mente e corpo, sujeito do conhecimento e objeto conhecido) são, a um tempo, o ápice deste processo e o mergulho na crise. A representação não mais está à altura de dar a medida da ordem das coisas. A re-orientação heideggeriana da fenomenologia para um enfoque mais propriamente ontológico do que epistemológico e a valorização da compreensão como modo originário de se estar no mundo, ratificam o seu esgotamento.
À hipertrofia do sujeito moderno, que se prolonga de Descartes até o idealismo alemão (num crescendo que vai de Kant a Hegel), se sucede a sua agonia. Um marco filosófico significativo desse progressivo colapso é a recusa nietzschiana em privilegiar um sentido como verdade em detrimento de outros possíveis (determinados falsos). As condições da verdade não mais são atribuídas a uma ordem objetiva. O conhecimento aparece, pela primeira vez, como sintoma da verdade subjetiva do eu e não como imagem neutra da realidade.
Outro golpe decisivo contra as pretensões do "representar" ao domínio cognitivo do "ser" é assestado pela descoberta do inconsciente. O divórcio entre representação e consciência inviabiliza um modelo de conhecimento, não obstante, ainda hoje vigente. A tentativa lacaniana de retirar a Psicanálise dos impasses da Psicologia, enredada na malfadada idéia de "representação inconsciente" (proporcionando-lhe uma base menos implausível com o suporte da lingüística), alastra a crise para outras disciplinas, ao promover uma revisão da noção de signo já fundamentada na descrença na possibilidade de representar transparentemente coisas para sujeitos. A inadequação fundamental entre significante e significado - possibilitada pela lingüística saussuriana, mas cujas implicações maiores foram mérito de Lacan (1966) - é uma trilha seguida por boa parte da reflexão pós-moderna e se alastra para outras ciências humanas.
Cada vez mais disciplinas como a História e a Antropologia se debruçam sobre o papel do sujeito cientista na produção do saber – o que faz? Descreve, traduz, observa, medeia, é porta-voz, co-autor de saberes produzidos ou enraizados nas comunidades que estuda? E cada vez menos parece crível que a mera ênfase no cunho convencional, social e discursivo da noção de representação, por si só, seja suficiente para poupar a Psicologia de entraves para o seu desenvolvimento e para a realização das suas melhores esperanças sociais e políticas, provocados pela sua inadequação.
Não obstante aqui esteja em pauta a vertente epistemológica da sua crítica, sublinhe-se que a problematicidade da noção de representação é tão aguda que repercute para além dos âmbitos filosófico, psicanalítico, semiótico e científico. Os seus usos nas linguagens estéticas e na esfera da política3 também são postos em questão. Críticos apontam a instituição da representação política como pouco democrática e a sua crise reflete-se igualmente no progressivo abandono da arte figurativa e no desprestígio da noção de mímese no âmbito da estética. A arte contemporânea acompanha o processo, distorcendo ou abandonando preocupações figurativas, ou mais genericamente, a pretensão de expressar uma imagem de algo dado, fora do seu próprio processo de construção (Behnke, 1994).
Não obstante, essas críticas não parecem ter sido capazes de persuadir a um abandono efetivo de um modo de produzir conhecimento, partindo de noções comprometidas com o arcabouço representacional. O prestígio destas continua tão em alta que, conhecer o humano, inclusive em Psicologia, em larga parte, continua a ser conhecer as suas representações.
Supõe-se que o debate sobre o problema possa ser enriquecido recorrendo-se a uma questão empírica, o caso da Jurema. A par da sua posição de destaque na cultura dita popular (o que lhe confere extrema importância para o entendimento da complexidade sócio-psicológica brasileira), a sua polissemia e a profunda e complexa interligação e pluridimensionalidade da sua incidência (psicológica, social, política, étnica, religiosa, histórica, bioquímica, literária, botânica e antropológica) contribuem para que se constitua um caso exemplar das dificuldades em refletir representacionalmente. A pluralidade de significados e de imagens que se lhe associam não recomenda a sua redução a objeto dócil à apreensão representativa.4
Embora esta condição possa levar à suposição indevida de um sem sentido e à atribuição de confusão às produções do imaginário popular (mesmo quando explicitamente se pretende resgatá-las e dignificá-las), proceder dessa forma é desistir de prestar atenção à Jurema, tão profundamente reveladora do brasileiro e popular. Há a alternativa de contrariar esse risco, desistindo do hábito de negar o estatuto de significância às coisas e do empenho em reduzi-las a representações (pouco importando para o presente argumento a suposta "natureza" destas representações: social ou psíquica, apreensões objetivas ou réplicas subjetivas, construções individuais ou dialógicas e interpessoais etc.).

Ramificações da Jurema
A palavra Jurema apresenta diversos significados, os quais não se resumem a usos distintos do seu emprego, na medida em que podem aparecer interligados. Poderia supor-se ter havido um significado inicial, progressivamente encoberto pela perda de memória e por uma mentalidade popular confusa.
Seria igualmente possível retalhar a Jurema em vários significados, mais ou menos arbitrariamente ligados à mesma palavra.
Ao se examinar mais de perto essas possibilidades, há de se convir que meramente reiteram uma pré-concepção de objeto e de palavra, insistindo em deixar no limbo a sutileza e a riqueza da interdependência entre todas as suas acepções.
Proceder dessa forma é, também, descartar ou menosprezar a enunciação popular e deixar passar uma oportunidade única de seguir traços da memória social brasileira e de acompanhar as suas deambulações. Na contramão dessa tendência, experimente-se dar ouvidos às enunciações da Jurema, nas diversas acepções em que ela se revela:
Jurema é uma árvore, mas não exatamente. É uma e outras. A sua identificação botânica permanece relativamente indefinida.5 O nome pode se referir (principalmente) a espécies dos gêneros Mimosa, Acácia e Pithecellobium (Sangirardi Jr, 1983, citado por Grünewald, 1999a), que não espelham as denominações populares de várias árvores como Jurema (Preta, Branca, Vermelha, etc.), as quais por sua vez admitem variação regional.6
Jurema é uma bebida. A partir de partes daquelas plantas, nem sempre as mesmas (as mais referidas são a Mimosa tenuiflora e a Mimosa verrucosa), obtém-se um líquido de uso religioso e medicinal. As fórmulas do seu preparo, os tecidos vegetais utilizados e as dosagens, assim como a combinação com outros ingredientes, são variáveis.
Jurema é uma cerimônia religiosa (diversamente celebrada por índios ou caboclos) no âmbito da qual aquela bebida é comungada. Às vezes distinguida como uma religião específica no complexo cenário da espiritualidade brasileira, mais comumente o culto da Jurema apresenta-se difuso em práticas religiosas nas quais pode ter um papel mais ou menos central: pajelança, toré, catimbó, umbanda, candomblé de caboclo etc.
Jurema é uma "entidade" espiritual que se manifesta no transe de adeptos dessas religiões (Anthony, 2001). Ou uma classe, um tipo de "entidades", havendo muitas Juremas. A Jurema que se manifesta nesses cultos pode caracterizar-se de maneira bastante variada em diferentes práticas e em diversos núcleos da mesma religião. Às vezes, a sua caracterização pode ser diversa no mesmo núcleo, ou até mesmo Juremas diversas podem incorporar na mesma médium.
Jurema também pode ser o local de culto e oração: a mesa da Jurema ou o "congá" umbandista.
Jurema é o "mundo espiritual" de onde provêm os encantados que se manifestam nas sessões.
Jurema é o "plano espiritual" dos espíritos cultuados na difusa "espiritualidade brasileira", que se apresentam como índios.
Jurema é uma índia metafísica. Atende pelo nome de Jurema uma apresentação antropomórfica do sagrado florestal. Em rituais, convivem a bebida e a "cabocla" do mesmo nome (Assunção, 2001). Una ou duas?
Jurema pode ser uma "linha". A "linha" das "caboclas de Oxossi" (antropomorfoses femininas de epifanias florestais, "encantos da mata"). É uma e múltiplas.
A linha da Jurema pode não se restringir à "falange" de "espíritos da mata femininos". Há "espíritos masculinos" que são juremeiros.
Não obstante sertaneja e planta, a Jurema é hoje associada a caboclas da água e especialmente do mar (conforme o som "juremar" e a significância da cor comum ao oceano e à mata).
Jurema é um objeto. Pintura ou estatueta de uma índia, com traços que podem variar - as suas apresentações icônicas estão longe de serem tratadas como meras representações - na prática ritual, podendo receber a atenção, cuidado e respeito devidos à própria "realidade".
Mas a sua imagem não necessariamente se corporifica em objeto material. Pode ser aparição objetivamente percebida por "videntes", com a mesma qualidade da percepção de uma pessoa comum, como pode igualmente surgir como uma "imagem mental" parecida com as cenas oníricas, dela se distinguindo por acontecer em vigília e por outros sinais que variam bastante de informante para informante (eventos concomitantes como cantos de pássaros ou vôos de borboletas, nitidez da imagem, "avisos" e "confirmações" etc.).
Jurema é uma cidade. A cidade da Jurema, uma cidade do Além. Mas muito concretamente a cidade da Jurema pode consistir numa coleção de copos e taças com diversas bebidas que, com fins rituais, se assentam na "mesa da Jurema"; bem como pode ser uma juremeira (árvore) ou um juremal.
Jurema é a mata. A cidade da Jurema pode alargar-se do juremal à totalidade e variedade da floresta, no seu conjunto.
Jurema é um tronco (de juremeira). Um galho que ritualmente marca um ponto de sacralidade no lugar do culto. Mas o tronco do juremal também é o lugar de onde vêm os caboclos e mestres do seu culto, o que é literalmente verdadeiro: mais do que uma figura de linguagem, a Jurema ingerida comumente é preparada a partir da casca do tronco (ou da casca da raiz).
Nos pontos, reitera-se assiduamente que a Jurema é um "lugar" de onde se vem ou para onde se vai. Vários pontos cantados o expressam, preservando uma ambigüidade significativa do outro como eu: Eu venho de longe, do tronco do juremal. Quem vem? O caboclo índio étnico? O praticante do culto que realiza o ritual? O "guia" que "incorpora"? O Outro ou eu? Como a Jurema poderia representar-se, se se indetermina o sujeito relativamente ao qual ela se objetivaria?
Essas árvores, troncos e espiritualidade também são um sinal diacrítico da identidade étnica indígena. A Jurema é um traço significante que delimita o "ser" índio. No século XX, a perpetuação do seu culto (depois de meio milênio de perseguições) passou a ser um modo de reconhecer a etnia e processos de aculturação se inverteram em processos de etnogênese. Não apenas o Serviço de Proteção ao Índio (antecessor da FUNAI) o adotou como critério de reconhecimento de comunidades indígenas (o que paradoxalmente incentivou a preservação ou reinvenção do uso, a fabricação de tradições), como remanescentes de tribos indígenas competem entre si para se demarcar do culto caboclo e para preservar o segredo e afiançar a fidelidade dos seus ritos à origem, assegurando-se uma "pureza" étnica (Grünewald, 1999b).
De qualquer modo, cumpre sublinhar que este diacrítico apenas aparentemente se consubstancia num fato botânico. A concepção contemporânea de planta obviamente não é a mesma do universo indígena (haja vista a "imprecisão" taxonômica), embora raízes desta talvez aflorem na remissão da árvore a uma figura de mulher.
Quimicamente, a Jurema (Mimosa tenuiflora) apresenta um alcalóide da família dos alucinógenos indólicos (Carlini & Masur, 1989; Graeff, 1984). Mas a dimensão de sacralidade do seu consumo passa ao largo da descrição bioquímica dos seus efeitos e ambas são incompatíveis e verdadeiras à sua maneira. Por um lado, nem sempre as dosagens e os modos de consumo ritual que "abrem os encantos" seriam capazes de explicar as alterações de consciência por eles provocados. Por outro, quando se examina a Jurema por uma perspectiva estritamente simbólica, descobre-se que os pretensos símbolos universais nela envolvidos são realmente significáveis a partir de procedimentos muito particulares e de ações rituais, neurofisiologicamente eficientes.
Além disso, qualquer tentativa de reduzir a Jurema a uma superstição a ser esclarecida pela ciência moderna, ou como remetendo a uma tradição indígena degradada, pressuporia uma concepção linear do tempo, não autorizada pelos dados. O modo arcaico do seu consumo se mantém como núcleo de identidade e de resistência étnica indígena7, garantia de reconstituição e continuidade, mas a Jurema também se internacionaliza como enteógeno (Grünewald, 1999a) e freqüentemente estas diversas dimensões convivem entre si, ao mesmo tempo e, às vezes, nas mesmas pessoas.
Antiga e contemporânea, na Jurema enraízam-se memórias sociais inconscientes. O seu arcaísmo e reflorescimento permitiriam transportar significâncias e revelar processos de conservação de tempos aparentemente perdidos, pela falta de documentos escritos e pela extinção física de povos?
Historicamente, o uso indígena da Jurema não foi meramente ritual e religioso. Perseguida pela piedade romana enquanto meio de cura, a Jurema foi tolerada quando ingerida em ocasiões de guerra (Andrade & Anthony, 1998). Os juremeiros são também guerreiros, histórica e miticamente falando e, certamente, não é à toa que, na sua versão antropomórfica, a Jurema possa se fazer acompanhar de flecha e bodoque.
Resistente, desde há muito cultivou-se além do território simbólico brasileiro estritamente indígena. Ramifica-se especialmente na memória e nas epopéias do homem nordestino, sendo celebrada por um cancioneiro popular que, às vezes, descreve o seu uso ritual e medicinal, sem por isso deixar de ser metafórico e simbólico. É principalmente (mas não exclusivamente) nesse âmbito que a Jurema é apreciada como comunhão com o sagrado cristão.
Mesmo entre as comunidades indígenas que a empregam diacriticamente como seu distintivo, a "pureza" étnica professada manifesta-se sincreticamente. A palavra anjucá significaria "anjo cá" e o vinho da Jurema seria o verdadeiro sangue de Cristo, pois quando foi derramado teria sido guardado junto a um pé de Jurema (Grünewald, 1999a).
Bastide (1945/2001) relata que os poderes associados à Jurema e que a distinguem das outras árvores são atribuídos pelos catimbozeiros ao fato de a Virgem, na fuga para o Egito, ter escondido o menino Jesus numa juremeira. A árvore "guarda" a Sagrada Família (Brandão & Rios, 2001) e, entre as mais importantes "falanges de espíritos" que a acompanham, incluem-se os caboclos do Rei Salomão (Carlini, 1993).
Em suma, em vez de proporcionar uma "sua" representação, a Jurema é multiplicadora de representações. Não é uma única planta, abrange a (polissemia da) mata inteira. Os seus pés são cidades. Afigura-se mulher, cabocla, morena, linda, índia... Poderosa, não obstante fruto de uma cultura oral, enraíza-se em letras: os "seus" índios ora se revelam seres espirituais assemelhados a construções literárias românticas ou a imagens de comemorações cívicas (Santos, 1995), ora, quando efetivamente pessoas e comunidades indígenas, pelo menos em parte, estas receberam tal identidade a partir de critérios disponíveis na literatura antropológica.
Porta-voz de um recalcado coletivo e significante do seu retorno, a Jurema guarda saberes sociais e memórias coletivas incompatíveis com a delimitação representativa. Fitomorfose humana, freqüentemente guarda sentidos corporais e espelha existências, aquém e além da estrita determinação de significados e da sua abstração em símbolo.

Cancioneiro da Jurema
Portentoso festival de deslocamentos, literalmente botânicos, condensados com aspectos cultuais que metonimicamente também podem denominar-se "Jurema", não adianta persegui-la para encontrar um "umbigo" botânico ou etnográfico que lhe ache uma realidade final, a qual seja a origem das suas representações e permita objetivá-la total e coerentemente. Real e sujeito, é Outro misterioso e antropomórfico. Conta-se, em parte, e as folhas das suas escrituras podem ser escutadas recorrendo-se aos poemas cantados que a celebram.
A música ritual relativa ao seu culto permite-lhe mostrar-se tal como se revela aos olhos da cultura dita popular. A Jurema é planta. Tem raiz, tronco, sementes, folhas, flores, perfume..., que não se resumem a figuras de linguagem, nem se achatam à mera botânica. A Jurema é algo mais: humana, mulher, morena, linda, consciência, líquido, sagrado. O seu perfume e as suas folhas comportam um "clima" que a consubstancia. Transportam caboclos. Os seus pés são cidades. Misteriosa, "reside" no centro da mata virgem. Lá nascem (polissêmicas) flores. É funda a raiz da Jurema e a comunhão da sua casca desperta consciência e transporta memória.
Muito profunda, irrecalcável retorno de raízes étnicas indígenas nos corpos sujeitos brasileiros, a Jurema retorna em mil e uma facetas que, longe de a objetivarem, refletem o ponto de vista dos seus interlocutores, sem prejuízo da sua sacralidade.
Muitos dos seus "pontos" dramatizam performances rituais e memórias sociais.8 As folhas da Jurema podem ser maceradas, mas a sua colheita também pode ser o transe como orientação para a vida dos médiuns e para a comunidade dos fiéis, humanas folhas desgarradas da árvore mãe, caboclos desenraizados que "incorporam" os do "Além" e com eles filialmente se aconselham.
Levar essa literatura a sério é tomar a letra ao pé do corpo. A Jurema se revela como uma espécie de poesia imanente ao imaginário brasileiro, cuja decifração implica um enredamento na nervura sutil das folhas e em contato com espinhos. Pouco importa a inconsciência de uma representação total dessa epifania por parte dos sujeitos populares atingidos pelo seu "tombo" (iniciação). Eles são mais do que sabem, pois a Jurema transborda a consciência.
Segue-se uma seleção de trechos e comentários de letras de músicas rituais de domínio (ou pelo menos de uso) público - na sua quase totalidade gravadas em terreiros umbandistas da Grande São Paulo - que não se pretende nem poderia ser exaustiva.
O método seguido consiste em tomar literalmente a sério o que se enuncia pelo multifacetado repertório musical ritualmente eficaz. Não se leva em conta os significados conscientemente atribuídos pelos participantes aos seus ritos, mas tão somente o que as letras implicitamente deixam às claras, seja por eles explicitado ou não (isto é, dá-se ouvidos ao Outro, escuta-se o inconsciente).
Cada cantiga ecoa frases de uma narrativa do Outro, reveladora de memórias sociais, expectativas históricas e principalmente de processos coletivos de cognição, não redutíveis a representações nem totalizáveis por sujeitos individuais.
O ponto fulcral é que a luminosidade da Jurema (inclusive a alucinose que suscita) afirma-se não ser da ordem da ilusão. Para os que a cultuam, impõe-se a tarefa de ter coragem para ouvir a sua verdade e se aprofundar no próprio ser: A Jurema não engana ninguém.
A declaração, mais do que descreve, firma e confirma o seu valor e seu uso ritual. O estatuto dos enunciados que a revelam apresenta-se mais propriamente performativo do que descritivo. Em conformidade com esse modo de acontecer do fenômeno religioso, juízos de realidade extemporâneos não podem pôr entre parênteses as implicações hermenêuticas, éticas e metodológicas da decisão de dar crédito ou não à sua narrativa.
O acesso aos recônditos da Jurema depende de um trabalho de interpretação: Oh! Jurema Preta, senhora rainha. Dona da cidade, mas a chave é minha: há "chaves" para conhecer os seus segredos. O seu culto apela a um empenho e competência hermenêuticos, ritualmente reafirmados. Alteridade enunciante, é senhora dos seus domínios. O segredo guarda-se e narra-se a quem quer.
Mas os seus desígnios não são arbitrários. Afirmam-se obedientes ao "superior": Na sua aldeia,lá na Jurema, não se faz nada sem ordem suprema. O seu culto ordena-se pelo mais elevado. É profundo: Tempo disse, Tempo dirá, que é funda a raiz da Jurema.
O tempo, sacralizado, afirma-se como perene, garante o culto de abissais raízes de árvores genealógicas indígenas e de estados alterados de consciência.
Comungá-la implica em procedimentos precisos e rigorosos, tanto "técnica" como eticamente: Oi lá nas matas, lá na Jurema, é uma lei severa, é uma lei sem pena.
Selva, a Jurema é uma lei sem pena, inflexível. Mas, paradoxalmente, piedosa. É uma cabocla de pena, o que permite sublinhar um traço notável da significância inconsciente, social e psíquica: os elementos significantes compõem cenas, presenças, mas não objetivam conteúdos. Podem ter usos que, do ponto de vista da ficção representativa, parecem contraditórios.
A Jurema é um clube para caboclos, uma ordem para os que se vestem de pena (se recobrem de misericórdia, conforme o implícito contexto significante da língua portuguesa, independentemente da consciência dos informantes poder ou não resgatá-lo). A Jurema convida e preside: Se ele é caboclo e se veste de pena, venha ver as forças que tem a Jurema.
Ao vestir-se de pena, a Jurema (também) é alada (elevada) e colorida (luminosa). Note-se o cunho sensorial e imediato das metáforas, imagens para levar ao pé do corpo, sem distinção entre coisas e significância. São quase tácteis e veiculam valores. Oferecem-se literalmente ao "olhar".
Os caboclos, físicos ou metafísicos, acodem performativamente ao chamado para "ver" - implícita alusão à "luminosidade" (alucinose) da Jurema. Ao contemplá-la, Outro sujeito, são capturados pela sua luz, vivenciada como olhar: como é brilhante o seu olhar.
A sua associação a rios é uma constante - Jurema sentada na beira de um rio - e os pontos insistem na temática do "ver": Eu vi a Cabocla Jurema se banhando na cachoeira. Mostra-se nas águas. Revela-se em águas que vêm do alto.
Como essa linguagem não é representativa, apenas ilusoriamente se poderia confundir esse tipo de "altura" com uma localização espacial (vide Corbin, 1971) ou um acidente geográfico: Eu venho das águas claras, eu venho do alto mar. Eu venho de muito longe, do tronco do juremal. A Jurema é grandiosa. Acima de qualquer realismo, a sua raiz sertaneja implanta-se em alto mar. As águas claras, do longínquo alto mar, circulam pelo tronco do juremal.
Além de rios e cachoeiras, literalmente, há mar no juremar: A marola lá do mar, aí vem rolando, e a cabocla Jurema é quem vem chegando. A par da sonoridade, também a cor das matas pode ligar a cabocla ao mar: O seu penacho é verde, é da cor do mar. Longe de qualquer veleidade de representação objetiva, pura significância ao pé do ver.
No caminho da significância, a liquidez da Jurema é múltipla, não se resumindo à seiva e a seus preparados. Tentar explicá-lo apenas por a planta manter-se viçosa no meio da seca é perseverar na linguagem do erro e do acerto representativo. Não há realismo. A moça linda, índia, pode ser sereia: Cabocla da juremeira, sereia em alto mar.
Na mesma linha, a luminosidade marítima pode literalmente consubstanciar-se em estrelas ...: Sou a Cabocla Jurema, sou a Estrela do Mar. A polissemia da expressão navega por todas as combinações de sentidos, do animal de mesmo nome até à estrela que orna a cabeça da mais comum imagem umbandista de Iemanjá.
O brilho estelar em pauta espraia-se pelo firmamento: O seu manto é de estrelas, ó Jurema, sete estrelas "lhe" alumiam, ó Jurema.9 A Jurema reveste-se de luz e reverbera entre "alto" e "mar": No céu tem estrelas, no mar também tem, salve a estrela do céu, salve a Estrela do Mar.
Mais uma vez, goram-se as expectativas de encontrar qualquer laivo de realismo. A estrela não se prende ao firmamento e reside Lá no juremal, onde canta o rouxinol, onde mora a estrela guia, onde tem raiar do sol.
É impossível reduzi-la. Alcança-se em imagens, mas em realidade não se captura. Está além da imaginação: Ela vem de longe, de longe sem imaginar. No capacete três penas, no braço uma cobra coral. Ela é Jurema, cabocla primeira, rainha do meu jacutá.
Posto que é impossível representá-la, há liberdade para imaginá-la em forma humana, o que permite que a pluralidade dos seus sentidos se dirija a todos os sentidos humanos. Configura-se feminina e bela. Enuncia-se mulher, não obstante planta: Que moça linda é a cabocla Jurema. A sua atração é envolvente e (quase) sensorial. Mostra-se humana e sedutora.Assenhoreia-se dos fiéis prendendo o olhar. Chama a atenção. Cativa.
A antropomorfose permite atingir múltiplas facetas do praticante. O encanto pelo espírito pode ser também sensual. Desta forma, o muito estranho, Outro longínquo, mostra-se à medida humana. Os diversos modos como a sua ação possa se sentir vão tender a se configurar em vestes e enfeites de mulher: A Jurema é muito linda, com seu capacete de pena.
Como o significante "pena" é comumente utilizado como metonímia de caboclo, um capacete de penas também significa que a Jurema carrega na sua cabeça muitos índios (as suas "luzes", os seus "falangeiros"), o que faz sentido na organização do ritual, já que a ela é atribuído o papel de aconselhar e orientar "entidades" indígenas que incorporam nos terreiros.
Mas não é apenas na cabeça que a cabocla, linda, se veste de penas. A roupa que revela o seu corpo de mulher tem a mesma consistência plumária e luminosa: Mas como é linda a Cabocla Jurema, com seu saiote de pena. No âmbito dessa linguagem, tão superlativamente significativa para além de abstrações, não é possível separar beleza de moralidade e de sensualidade. A sedução da Jurema encanta todas as esferas da sensibilidade.
O seu conhecimento formula-se em muitos sentidos. Compõe-se de palavras e de luz, de cantos e de imagens. A "ciência" da Jurema é inerentemente bela. Dessa forma, reforça-se o seu poder de atração sobre o humano. Superlativamente atraente, é a própria soberania sobre o belo: É rainha da beleza.
Imagens como "penas" presentificam-na metonimicamente e instam ao "ver", ao imaginar, ao concentrar-se na sua "luminosidade". Tal contato e possessão estabelecem-se (fora da esfera intelectual e proposicional) como uma comoção emocional e estética, inefável, que, na linguagem do culto, é aludida na forma de profusas referências à beleza da Jurema: Eu tive um sonho lá nas matas da Jurema, nunca vi tanta beleza, cidade do juremal.
A Jurema é beleza e consciência atraentes. Interpela por meio de significâncias sinestésico-sensoriais. Luz em forma de planta (o que alude à materialidade do seu potencial alucinógeno), a sua cabeça é comparada ao Sol: Que lindo capacete de pena, que tem a Cabocla Jurema. Ele é tão lindo como a luz do Sol. É interpretada como manifestação vegetal da luminosidade solar: A coroa dela é um girassol.
O Outro é outra planta. A coroa da rainha é um girassol. A sensível alusão à superlativa e unificante luminosidade solar é patente. É sentida como sol em forma de planta, sem nenhuma necessidade de esgotar o sentido de sol numa coleção de significados.
A proliferação das suas fitofanias pode ampliar-se conforme a necessidade ritual e a liberdade poética: Jurema vem e traz as rosas, Jandira é quem traz o jasmim. As duas na umbanda são irmãs, minhas caboclas tenham pena de mim.
Pode igualmente dizer-se "ao lado" de uma outra importante presença do sagrado em forma de planta na cultura religiosa brasileira: Ela é Jurema, Aroeira, ela vem das matas, Aroeira, ela desce o rio, Aroeira, e sua flecha mata, Aroeira.
Associa-se a outras plantas sagradas, escorre no rio, é certeira. A sua polifonia imaginal pode expressar-se numa rica e multifacetada evocação da sua presença. A objetividade representativa dissolve-se em composição alusiva a algo absolutamente insubstantivo.
Inúmeras vezes, de planta específica, alarga-se ao conjunto da mata, floresta, pois, na linguagem dos "encantados", os lugares de encantamento, as suas "moradas", participam do seu ser, e Ela mora na floresta.
Na linguagem do culto, floresta (ou mata, ou macaia) opõe-se à aldeia. E aldeia tanto pode significar a comunidade dos caboclos, o lugar espiritual dessas "entidades", como referir-se à comunidade do terreiro. Portanto, é cabível interpretar floresta como alteridade relativamente ao propriamente humano, apresente-se este física ou metafisicamente ("médium" ou "entidade"). A Jurema é Outro, longínquo e misterioso. É a própria mata virgem - Estrela d’Alva é minha guia, alumeia sem parar (ou corre o mundo sem parar, uma variante). Ilumine a mata virgem, cidade do juremal (ou cidade do ajucá, segundo outra variante) - e a floresta é uma cidade de seres espirituais.
Não há dificuldade em assimilar a mata aos mistérios e desafios do não familiar, não humanizado, até porque a mitologia dos orixás também ritualmente permite essas aproximações. Mas, o culto da Jurema, celebrado com o corpo inteiro, não permite a redução da mata a uma alegoria do desconhecido e da inconsciência: No centro da mata virgem eu plantei raiz. Nasceu flores. O praticante, ao implantar-se no centro da mata virgem (no âmago da Jurema), fazendo-se outro, índio, colhe flores: O perfume da flor da Juremeira se espalha por todo o juremal. A benção dos caboclos de Aruanda, prá salvar filhos de Umbanda, é a mandado de Oxalá.10 Atendendo à ordem divina, o perfume da juremeira se espalha por todo o juremal. É a bênção dos caboclos de Aruanda. Os caboclos que se incorporam, portanto, depreendem-se da flor da juremeira. Acontecem em imagens poéticas que se presentificam sensorialmente e perfumam a consciência. Vêm da mata: Ê ê ê boca da mata, deixa esses caboclos passar, boca da mata.
Todas as cenas performáticas do transe podem apresentar-se antropomorficamente. Os portões da mata são a sua boca. A boca de uma mulher que profere sentidos enunciáveis por caboclos: Quando o caboclo bate a folha da jurema e preto velho traz arruda e guiné, eles vêm trabalhar na lei de umbanda.11
Trabalhar na lei de umbanda, para um caboclo, é bater folha da Jurema. Aprofundar essa estrofe implicaria num mergulho nos significados rituais associados ao uso ritual do vegetal. Limitando-nos ao esclarecimento das ressonâncias antropomórficas de "folha", cumpre dizer que, no âmbito dessa "leitura" presentificante, é importante não esquecer que cultualmente a Jurema é uma "árvore de ciência" e que as suas folhas podem ser lidas como páginas de um livro.
As folhas também podem ser os médiuns, que os caboclos vão apanhando no chão: O vento está soprando na mata, jogando as folhas da Jurema no chão. O vento está soprando, as folhas estão caindo, caboclos vão apanhando, é lá no chão. Assumida como mãe, é da Jurema que se desprendem as vidas humanas, jogadas na terra, mas recolhidas e cuidadas pelos caboclos que, para tanto, dependem de autorização superior: Ele é caboclo em qualquer lugar, ele não apanha a folha da Jurema sem ordem suprema de Pai Oxalá. A par de uma referência ao ser caboclo como obediente a Deus, nesse ponto percebe-se claramente a fusão entre o metafórico e o literal na linguagem do transe, pois as folhas vegetais são efetivamente colhidas segundo prescrições religiosas.
Numa outra versão fica claro que as folhas (também) são os médiuns. A Jurema aparece como origem e os caboclos surgem como mediadores de re-ligação: As folhas da Jurema o vento vai levando, o vento vai levando, e os caboclos vão apanhando. A incorporação é significada como tempestade, sopro (o que permite dar uma imagem dos movimentos convulsivos que habitualmente acompanham a entrada e saída do transe). Os movimentos corporais, os balanços da incorporação, parecem o sacudimento de uma árvore pela ventania. Mais uma vez, não importam os sentidos inscritos na ordem objetiva do mundo, mas o limiar de sentido inscrito na junção entre corpo e imaginação.
Não obstante a total falta de realismo (e talvez por isso mesmo), cenas descritoras da vinda do Outro em direção ao "eu" possuem uma notável eficácia imaginal enquanto fatores indutores do transe.Em vez de concentração e invocação por parte dos cultuantes, é como se o Outro se concentrasse no local e tempo do ritual: Sua flecha caiu serena ó Jurema, dentro deste congá. Essa inversão especular é um traço bastante característico dessa linguagem.
A flecha da Jurema pode ser uma metonímia da sua presença. Como todos os adereços das "entidades", alude a uma parte da funcionalidade do ser Jurema que, mais do que representá-la, permite compreender estético-sensorialmente as ações e interpelações do Outro, personificado em floresta e mulher. "Serve" para defesa e para a caça. Com ela, a "índia" protege e alimenta os seus filhos. Também "caça" os seus fiéis. Mas a sua flecha cai serena. A Jurema "é" paz. Comporta serenidade.12
Como sói acontecer com muitos pontos, este admite variações: Sua flecha caiu certeira, Jurema, dentro desse congá. Nessa estrofe sublinha-se a precisão da Jurema e reitera-se o seu acerto. Performativamente, a invocação inclui um apelo, um desejo de eficiência e a determinação de uma resolução eficaz. Outra variante multiplica o número de flechas: Suas flechas caíram serenas, morena, dentro deste congá.
Em todos os casos, sucede-se uma narrativa incompatível com o achatamento proposicional. Encontra-se, mais do que uma representação falsa de um estado de coisas (preconceito que implicaria em reduzir o discurso do transe à ilusão), um apelo performático a uma alteridade alusiva ao próprio ser e proposta como sujeito enunciante de uma narrativa.
A serenidade que se supõe às flechas que atingem o espaço ritual significa muito mais um apelo a uma incorporação tranqüila - uma vez que a flecha é metonímia da ação que é ser Jurema enquanto toca aos circunstantes - do que propriamente descreve o momento de entrada em transe, freqüentemente quase convulsivo - o que se simboliza e se reconhece em pontos como A Cabocla Jurema quando vem na aldeia faz a mata balançar.
Pontos que, a par de explicitarem o espelhamento antropomórfico da mata no corpo, abrem caminho à integração significativa desses polissêmicos balanços, por vezes veementes, para não dizer "violentos": Olha o tombo da Jurema, no balanço que ela dá.
A Jurema sacode o corpo e balança existências, qual "mãe" que prepara os filhos para a vida: Nas matas que ela domina, não deixa os filhos tombar. Aqueles que a obedecem aprendem a não cair. Permanecem atentos. Concentrados: No centro da mata virgem, uma linda cabocla eu vi. Com seu saiote de penas, é a Jurema filha de Tupi.
A "índia" filia-se ao ancestral oprimido. Reabilita-o e dá-lhe feição metafísica. Institui-o como antepassado. A letra mostra-a como forma de reconhecimento e admissão do Outro aborígene, bem como de filiação a Outro ameríndio.
O transe é uma forma de aproximação ao distante e de encontro com o estranho familiar: Os portões da mata eu já mandei abrir. Quem tem sangue de caboclo, está na hora de sair. Como cidade, a mata tem portões. A saída dos caboclos, a abertura dos portões, significa a permissão para a entrada na consciência dos médiuns (ou dito de outro modo, a autorização para a alteração da sua consciência). É preciso ter sangue de caboclo, ser seu "filho".
No final de uma gira, na hora da desincorporação, o eu retoma do outro o seu lugar, a consciência volta ao normal: Caboclo vai embora, prá cidade da Jurema. Os caboclos retornam para o "lugar" de onde vieram e esse pode ser um momento de reafirmar a ambigüidade entre "eu" e "outro", que se tem evidenciado nuclear no processo do transe - Vou prá Jurema, quem vai embora sou eu - e que é típica de pontos de incorporação.
Eu venho de muito longe, do tronco do juremal. Quem vem? Um caboclo ou "eu"? Outro, ou o sujeito "dissociado"?
A lonjura do tronco igualmente ecoa memórias sociais inconscientes vinculadas à vastidão de raízes indígenas, donde brotam e onde se implicam os ancestrais "falangeiros da Jurema". Afirma-se uma filiação a um tronco genealógico, presente e atual, uma identificação que também é uma adoção pelo Outro, bem como um compromisso em escutar as raízes: Ele jurou e tornou a jurar, de ouvir os conselhos que a Jurema lhe dá. Não apenas ontem, mas sempre: Ele jurou e sempre jurará, pelos conselhos que a Jurema vai lhe dar.
Consciência alterada, abissal, a Jurema é conselheira. Ela fornece instruções aos que com ela operam. Para isso a comungam nos rituais mais próximos das raízes, ou lhe prestam atenção, mesmo sem o recurso à bebida. Ela transgride os limites das várias imagens que a tentam conter. Na verdade é ela que, conforme o conceito que dela se tenha, revela quem são os que a "representam": bioquímicos, índios, catimbozeiros, missionários, botânicos, umbandistas, sociólogos, psiquiatras etc.
A sua docilidade às variadas formas de interpretá-la evidencia que escorre por entre conceituações e escapa às tentativas de objetivação. Acontece como Outro enunciante que, ao depor-se, situa os seus interlocutores. Narra-se de maneira complexa e furtiva a tentativas de definição. Renunciando-se ao viés psicologista da Psicanálise, a Jurema pode e deve ser tratada como Outro interpelante.
Dar ouvidos ao Outro não significa afiançá-lo existente, nem tomar partido contrário à sua existência. Aliás, tranqüilamente não realistas, as suas enunciações mostram-na despreocupada quanto a decisões metafísicas sobre o estatuto objetivo da sua realidade.
Presentifica-se poeticamente, certeira e serenamente, conforme razões não domesticáveis cognitivamente.
O simbolismo da planta deriva dos galhos vegetais para significados na língua. A Jurema, árvore e mulher, promove um estranhamento do humano e uma humanizante natureza. As suas folhas, flores, troncos e raízes deslizam polissemicamente, irrealizam-se, e culminam em processos no âmbito dos quais a planta pode ser signo de um símbolo e o símbolo presentificar verdadeiramente a planta. Não faz sentido a dicotomia entre coisa e signo.
Finda a representação, substituída por processos de trans-substanciação, muito sérios, mas física e metafisicamente lúdicos.
Quiçá a Jurema auxilie a estabelecer uma chave para que a Psicologia cada vez menos formate o "popular" à sua medida, antes compreenda como ele se concebe, em vez de pretender corrigi-lo ou ilustrá-lo.

Aventamento de uma hipótese para a Psicologia
Planta sertaneja, a Jurema está bem implantada no imaginário brasileiro contemporâneo. Assim como tem sido útil à recriação de identidades indígenas, a sua indelével persistência na cultura popular urbana significa que continua a guardar verdades e a ser significante para a generalidade da população brasileira, espoliada econômica e simbolicamente das suas raízes.
Tão arcaica e pós-moderna, a Jurema explode a (sua) representação em traços que não necessariamente são signos objetivos de uma espécie botânica. Onde está?
Vai-se fixá-la no núcleo indólico, compreendê-la como diacrítico da identidade indígena ou descrevê-la em termos botânicos (tão distantes da apreensão do sagrado em forma de planta e eloqüente)?
Sob pena de resumir a sua complexidade à confusão mental e incongruência, se se quiser estabelecer-lhe um modelo representativo, é necessário estilhaçá-la em diversos objetos, a fim de evitar aparentes contradições.
Referências a folhas, troncos e raízes assumem o lugar de metáforas, segundo as possibilidades poéticas da linguagem e, ao mesmo tempo, descrevem literalmente processos reais de preparação da bebida ritual. Mesmo cindindo-a em diversas representações, que parcialmente se recubram ou sejam antagônicas, ainda assim se escamotearia que os seus sentidos também se significam pela sua manipulação enquanto planta (pelo uso prático da sua "coisidade") e na forma de gestos rituais que aludem a um inefável.13 Mas, por outro lado, essa "coisa" significativa que não se sabe representar - mas a Jurema é - muitas vezes realmente importa menos em si mesma do que como significante étnico ou personificação feminina do sagrado.
Propõe-se como Outro, revelador de quem o interpela, que opera na ausência de um referente determinado. É verdadeira coleção de traços significantes que mobilizam muitos significados, como tintas oferecidas ao ofício de um pintor, cujas telas são diversas compreensões, tradições e recriações.
Os seus quadros não se apresentam miméticos. Convivem tranqüilamente contradições e paradoxos aparentes.
A Jurema escapa ao realismo. As suas aparições em formato representativo decalcam-se de intenções rituais pragmáticas. Induzem a agir, e não a referenciar.
As suas revelações ocorrem numa linguagem sinestésica, que atinge o medular do ser, inscrevendo-se em sensações e induzindo ações. Uma linguagem "tátil", em cujo âmbito (não verbal) o discernimento entre coisas-objetos e coisas-representações não faz sentido.
Uma linguagem reflexiva, sem ser abstrata (reflete-se com a totalidade do corpo, não reduzido ao cérebro e à razão).
O seu saber não se prende a conteúdos proposicionais. Com a Jurema ocorre o que, na falta de um termo melhor, poderia chamar-se de trans-semiose: há um desdobramento entre registros de memória e referências botânicas, epifanias antropomórficas e bases bioquímicas, que não pode ser contido nem fixado. Os sentidos da Jurema transbordam uns nos outros e a falta de um ponto de partida pode melhor ser descrita como uma multiplicação polimorfa da sua presença, até por não haver um modelo original que permita definir graus de fidelidade das suas "representações". A deformabilidade lhe é consubstancial.
Do ponto de vista do tempo, a Jurema é incompatível com a linearidade. A Jurema terá sido. Mas é. Implica Outro tempo.
Procurá-la como tradição perdida é ignorar a sua reconstrução ou reiteração contemporânea e supor que a ciência atual vai explicar a sua natureza é solapar a complexidade do fenômeno. Além disso, todos os tempos antigos e futuros da Jurema reúnem-se no instante da sua vivência. Indubitavelmente ela transmite identidade e filiação, mas esta é re-fundada pelo seu uso, no presente, para a reconstrução de um passado.
O mais condigno com o desafio e a riqueza desse monumento da cultura dita popular e da memória e identidade brasileiras é deixá-la viva nas circunvoluções de uma enunciação coletiva e histórica, que resgate sentidos presentes de memórias ancestrais e receba usos contemporâneos dos dons arcaicos.
Pois os ventos do juremal permitem, literalmente, dar ouvidos ao morto em âmbito não estritamente psíquico nem individual, abrindo perspectivas para uma reanimação de histórias enterradas, independentemente de fontes documentais verbais.
Tais ventos viabilizam a hipótese de promover um curto-circuito entre a Psicanálise e a História, soltando as mordaças que calam a voz do tempo; fornecem subsídios para a constituição de uma espécie de arqueologia social e psíquica que dê voz ao morto, promovendo a reanimação das estruturas e diretrizes inerentes aos modos da sua significância.
O entroncamento das suas raízes em memórias sociais inconscientes e o re-avivamento que ela promove (quer na forma do restabelecimento de laços sociais de filiação étnica, quer pela alteração de consciência que suscita, quer pelo encontro de ambos no transe), sugerem que a Jurema possa auxiliar a Psicanálise a desistir de recuperar para um "aparelho psíquico" o mundo da cultura humana (e vegetal!), antes pelo contrário, "aconselhando-a" a transplantar a metafísica psíquica para um meio naturalmente semiótico e includente do inconsciente como enunciante.

Referências
Albuquerque, U. P. (2002). A jurema nas práticas dos descendentes culturais do africano no Brasil. In C. N. Mota & U. P. Albuquerque (Orgs.), As muitas faces da Jurema: De espécie botânica a divindade afro-indígena. Recife, PE: Bagaço.
Andrade, J. M. T., & Anthony, M. (1998). Jurema: Da festa à guerra, de ontem e de hoje. Etnobotânica da Jurema: Mimosa tenuiflora (Willd.) Poiret (=M. hostilis Benth.) e outras espécies de Mimosáceas no Nordeste-Brasil. In Metapesquisa. Recuperado em 6 de jan. 2003 de: http://www.ufrn.br/sites/evi/metapesquisa/velhos/jurema.html
Anthony, M. (2001). Des plantes et des dieux dans lés cultes afro-brésiliens: Essai d’éthnobotanique comparative Afrique-Brésil. Paris: L’ Harmattan.
Assunção, L. (2001). Os mestres da Jurema. In R. Prandi (Org.), Encantaria brasileira: O livro dos caboclos, mestres e encantados. Rio de Janeiro: Pallas.
Bastide, R. (2001). Catimbó. In R. Prandi (Org.), Encantaria brasileira: O livro dos caboclos, mestres e encantados. Rio de Janeiro: Pallas. (Trabalho original publicado em 1945).
Behnke, K. (1994). A crise da representação. In Cadernos do Mestrado/Literatura, 10. Rio de Janeiro: UERJ.
Brandão, M. C., & Rios, L. F. (2001). O Catimbó-Jurema do Recife. In R. Prandi (Org.), Encantaria brasileira: O livro dos caboclos, mestres e encantados. Rio de Janeiro: Pallas.
Carlini, A. (1993). Cachimbo e maracá: O catimbó da missão (1938). São Paulo: Centro Cultural de São Paulo.
Carlini, E., & Masur, J. (1989). Drogas: Subsídios para uma discussão. São Paulo: Brasiliense.
Corbin, H. (1971). L'homme de lumière dans le soufisme iranien. Paris: Présence.
Gomes, M. B. (2001). A Jurema em regime entheógeno: A recriação contemporânea de um mito. Espiritualidade contemporânea, 1(2). Recuperado em 18 de janeiro de 2002 de: http://orbita.starmedia.com/~ohermeneuta/NOVAGNOSE/n2/jurema.htm
Graeff, F. G. (1984). Drogas psicotrópicas e seu modo de ação. São Paulo: EPU.
Grünewald, R. A. (1999a). A Jurema no "regime de índio": O caso Atikum. Amsterdã: Lycaeum.Recuperado em 18 de janeiro de 2002 de: http://users.lycaeum.org/~room208/jurema/Rodrigo/index.htm
Grünewald R. A. (1999b). Etnogênese e ‘regime de índio’ na Serra do Umã. In J. P. Oliveira (Org.), A viagem da volta: Etnicidade, política e re-elaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contra Capa.
Heidegger, M. (1962). Chemins qui ne mènent nulle part. (W. Brokmeier, trad.). Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1949. Titulo original: Holzwege)
Lacan, J. (1966). Écrits. Paris: Éditions du Seuil.
Mota, C. N., & Albuquerque, U. P. (Orgs.). (2002). As muitas faces da Jurema: De espécie botânica a divindade afro-indígena. Recife, PE: Bagaço.
Mota, C. N., & Barros, J., F., P. (2002). O complexo da jurema: Representações e drama social negro-indígena. In C. N. Mota & U. P. Albuquerque (Orgs.), As muitas faces da Jurema: De espécie botânica a divindade afro-indígena. Recife, PE: Bagaço.
Santos, J. T. (1995). O dono da terra: O caboclo nos candombés da Bahia. Salvador, BA: Sarah Letras.


Recebido em 21.02.2002
Aceito em 18.02.2003


1 Auxílio à Pesquisa FAPESP processo 00/02550-8. Uma versão preliminar foi apresentada no XI Encontro Nacional da ABRAPSO. Agradeço o apoio das comunidades umbandistas envolvidas na pesquisa e de seus dirigentes, as quais não nomeio atendendo a uma solicitação nesse sentido.
2 Endereço para correspondência: Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Av. dos Bandeirantes, 3900, 140140-901 Ribeirão Preto - SP. Endereço eletrônico: jfbairrao@ffclrp.usp.br
3 Seria, de fato, implausível, encontrar restrita ao âmbito epistemológico a crise da representação, uma vez que a própria definição de fronteiras já pressupõe uma representação de esferas de competência. O exame concreto da situação da Jurema na cultura brasileira permite constatá-lo, ao se verificar o cunho multifacetado da sua incidência e inserção, apenas aparentemente restringível à esfera religiosa.
4 Entre a redação e a publicação desse artigo veio a lume uma interessante coletânea, precisamente intitulada As muitas faces da Jurema: De espécie botânica a divindade afro-indígena (Mota & Albuquerque, 2002). Tanto a rica descrição e detalhamento de diversos aspectos da sua cultura, como a própria concepção "interdisciplinar" do volume, somam argumentos a favor da tese aqui defendida e ratificam a exemplaridade e utilidade da Jurema para essa discussão.
5 Albuquerque (2002) inventaria dezenove espécies de plantas denomináveis como "jurema".
6 Mota e Barros (2002) acrescentam uma Verbenaceae (Vitex agnus-castus) e concluem serem apenas três as plantas presentemente identificadas como Jurema pelos ameríndios do Nordeste, sendo as outras duas a Mimosa hostilis Benth - atualmente reclassificada como Mimosa tenuiflora (willd.) Poir. - e a Mimosa verrucosa Benth. (id.). As duas últimas teriam sido cientificamente compreendidas, ora como mimosas, ora como acácias, havendo a terceira igualmente se desdobrado em várias denominações do gênero Pithecellobium.
7 Embora significativamente as comunidades indígenas que hoje a adotam não sejam as mesmas do interior semi-árido e hoje extintas, que originalmente a cultuavam (Gomes, 2001).
8 Ainda hoje na umbanda paulistana é comum um ponto alusivo à iniciação de célebres catimbozeiros na forma de um desmaio junto a um pé de Jurema (tombo), após o qual se encontram mestres feitos: "Ó Jurema manda aqui, manda ali, manda acolá. Olha o tombo da Jurema e o balanço que ela dá". No momento em que se canta a palavra "tombo", é comum que as caboclas incorporadas façam um rápido movimento coreográfico que simula uma queda e a recuperação de equilíbrio. Não foi registrada nenhuma evidência de que houvesse uma memória consciente do significado de "tombo" no catimbó. Casos como este parecem confirmar a hipótese de haver uma transmissão semiótica (não psicológica) de memória social e validar o emprego heurístico da Psicanálise lacaniana em Psicologia Social.
9 Sete Estrelas também evoca a presentificação de um caboclo construído com esse nome. A análise do repertório musical e dos procedimentos de semiose do imaginário umbandista tem mostrado que os nomes muitas vezes aludem a aspectos de cenas imaginais que, por sua vez, com muita naturalidade, podem personificar-se em sujeitos do panteão.
10 Curimba da Tenda de Umbanda "Luz e Verdade", Continental, 1971, LPK-20.270.
11 Curimba da Tenda de Umbanda "Luz e Verdade", Continental, 1971, LPK-20.270.
12 Como é de regra nessa linguagem, que não divorcia cenas naturais de condições abstratas e subjetivas, tal "estado de espírito" pode ser aludido pelo "sereno da madrugada": Seu irmão é flor do dia, flor da manhã é Pena Dourada. Ele é o orvalho da noite, sereno da madrugada. Comporta água, sutileza e claridade (na forma suave de progressiva iluminação, aurora).
13 Não é à toa que, confrontados com pedidos de explicações sobre o culto, muitos respondem mostrando o que fazem (não se trata de dificuldade com a verbalização, nem de mera estratégia diversionista para preservar "segredos").
________________________________________
© 2004 Instituto de Psicologia

Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, Trav. 4, 399 Bl. 23
Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira
05508-900 São Paulo SP - Brazil
Tel.: +55 11 3091-4452
Fax: +55 11 3091-4462



revpsico@edu.usp.br





A Jurema Sagrada

A Jurema Sagrada tem o seu culto originado no Nordeste do Brasil, sendo a expressão religiosa e de resistência do povo nordestino.
Sendo herança dos nossos ancestrais indígenas com a influência européia trazida pelos portugueses quando aqui aportaram para colonizar o Brasil.
Esta soma cultural construiu uma nova visão espiritual do povo nordestino, a Jurema que apesar de todas as influências externas que tem sofrido vem resistindo e se expandindo aos dias de hoje.
Partiu deste encontro multi-cultural a construção desta nova visão espiritual, em que se tinha a cultura milenar indígena com um infinito conhecimento das ervas medicinais e litúrgicas e as orações dos europeus católicos, as orações fortes tão conhecidas no meio dos Juremeiros, existem orações para cada caso associadas as ervas sagradas os Juremeiros vem cuidando da população desde os tempos em que não havia, remédios alopáticos, farmácias, postos de saúde, muito menos hospitais.
A Jurema é dividida em Reinos, Estados, Cidades, vilas dependendo de suas raízes(origens) .
A Jurema tem em sua essência como fonte de conhecimentos mágico-espiritual, os Mestres trabalhadores, os mestres (as) de ciência, os encantados (as), os caboclos (as), os pretos (as) curadores é todo um universo mágico com seus Reis, Rainhas, Príncipes e Princesas.
Seus trabalhos se dividem em: seg, qua, e sex, para fumaça as direitas,
Fumaças para abrir caminhos, saúde, paz e felicidade.
Ter, qui, e sab, para fumaça as esquerdas
Fumaças com o intuito de desfazer os trabalhos e ou perturbações espirituais que estejam prejudicando o adepto ou um necessitado independente de formação religiosa.
Os antigos ainda se lembram das comadres senhoras parteiras, rezadeiras, benzedeiras de fama, suas casas viviam lotadas de gente em busca de lenitivo para seus males do corpo e da alma.
Hoje já vemos a Jurema em sua maior parte exteriorizando as influências recebidas das outras religiões de matriz africanas como a Umbanda e o Candomblé.
Jurema não tem orixá, jurema cultua santo católico pois tem uma forte influência católica desde a sua construção nessa nova visão multi-cultural com a influência da Umbanda caboclo virou oxoce a mãe dágua virou oxum, yemanjá e etc.
A máxima da Jurema é: fazer o bem sem olhar a quem
Tal qual o pé de Jurema a Jurema vem resistindo ao modernismo e acompanhando o progresso.
Mestre Melquisedec
Casa de Jurema Mestre Carlos
Comum/Extremoz/Rn

Ramificações da Jurema
A palavra Jurema apresenta diversos significados, os quais não se resumem a usos distintos do seu emprego, na medida em que podem aparecer interligados. Poderia supor-se ter havido um significado inicial, progressivamente encoberto pela perda de memória e por uma mentalidade popular confusa.
Seria igualmente possível retalhar a Jurema em vários significados, mais ou menos arbitrariamente ligados à mesma palavra.
Ao se examinar mais de perto essas possibilidades, há de se convir que meramente reiteram uma pré-concepção de objeto e de palavra, insistindo em deixar no limbo a sutileza e a riqueza da interdependência entre todas as suas acepções.
Proceder dessa forma é, também, descartar ou menosprezar a enunciação popular e deixar passar uma oportunidade única de seguir traços da memória social brasileira e de acompanhar as suas deambulações. Na contramão dessa tendência, experimente-se dar ouvidos às enunciações da Jurema, nas diversas acepções em que ela se revela:
Jurema é uma árvore, mas não exatamente. É uma e outras. A sua identificação botânica permanece relativamente indefinida.5 O nome pode se referir (principalmente) a espécies dos gêneros Mimosa, Acácia e Pithecellobium (Sangirardi Jr, 1983, citado por Grünewald, 1999a), que não espelham as denominações populares de várias árvores como Jurema (Preta, Branca, Vermelha, etc.), as quais por sua vez admitem variação regional.6
Jurema é uma bebida. A partir de partes daquelas plantas, nem sempre as mesmas (as mais referidas são a Mimosa tenuiflora e a Mimosa verrucosa), obtém-se um líquido de uso religioso e medicinal. As fórmulas do seu preparo, os tecidos vegetais utilizados e as dosagens, assim como a combinação com outros ingredientes, são variáveis.
Jurema é uma cerimônia religiosa (diversamente celebrada por índios ou caboclos) no âmbito da qual aquela bebida é comungada. Às vezes distinguida como uma religião específica no complexo cenário da espiritualidade brasileira, mais comumente o culto da Jurema apresenta-se difuso em práticas religiosas nas quais pode ter um papel mais ou menos central: pajelança, toré, catimbó, umbanda, candomblé de caboclo etc.
Jurema é uma "entidade" espiritual que se manifesta no transe de adeptos dessas religiões (Anthony, 2001). Ou uma classe, um tipo de "entidades", havendo muitas Juremas. A Jurema que se manifesta nesses cultos pode caracterizar-se de maneira bastante variada em diferentes práticas e em diversos núcleos da mesma religião. Às vezes, a sua caracterização pode ser diversa no mesmo núcleo, ou até mesmo Juremas diversas podem incorporar na mesma médium.
Jurema também pode ser o local de culto e oração: a mesa da Jurema ou o "congá" umbandista.
Jurema é o "mundo espiritual" de onde provêm os encantados que se manifestam nas sessões.
Jurema é o "plano espiritual" dos espíritos cultuados na difusa "espiritualidade brasileira", que se apresentam como índios.
Jurema é uma índia metafísica. Atende pelo nome de Jurema uma apresentação antropomórfica do sagrado florestal. Em rituais, convivem a bebida e a "cabocla" do mesmo nome (Assunção, 2001). Una ou duas?
Jurema pode ser uma "linha". A "linha" das "caboclas de Oxossi" (antropomorfoses femininas de epifanias florestais, "encantos da mata"). É uma e múltiplas.
A linha da Jurema pode não se restringir à "falange" de "espíritos da mata femininos". Há "espíritos masculinos" que são juremeiros.
Não obstante sertaneja e planta, a Jurema é hoje associada a caboclas da água e especialmente do mar (conforme o som "juremar" e a significância da cor comum ao oceano e à mata).
Jurema é um objeto. Pintura ou estatueta de uma índia, com traços que podem variar - as suas apresentações icônicas estão longe de serem tratadas como meras representações - na prática ritual, podendo receber a atenção, cuidado e respeito devidos à própria "realidade".
Mas a sua imagem não necessariamente se corporifica em objeto material. Pode ser aparição objetivamente percebida por "videntes", com a mesma qualidade da percepção de uma pessoa comum, como pode igualmente surgir como uma "imagem mental" parecida com as cenas oníricas, dela se distinguindo por acontecer em vigília e por outros sinais que variam bastante de informante para informante (eventos concomitantes como cantos de pássaros ou vôos de borboletas, nitidez da imagem, "avisos" e "confirmações" etc.).
Jurema é uma cidade. A cidade da Jurema, uma cidade do Além. Mas muito concretamente a cidade da Jurema pode consistir numa coleção de copos e taças com diversas bebidas que, com fins rituais, se assentam na "mesa da Jurema"; bem como pode ser uma juremeira (árvore) ou um juremal.
Jurema é a mata. A cidade da Jurema pode alargar-se do juremal à totalidade e variedade da floresta, no seu conjunto.
Jurema é um tronco (de juremeira). Um galho que ritualmente marca um ponto de sacralidade no lugar do culto. Mas o tronco do juremal também é o lugar de onde vêm os caboclos e mestres do seu culto, o que é literalmente verdadeiro: mais do que uma figura de linguagem, a Jurema ingerida comumente é preparada a partir da casca do tronco (ou da casca da raiz).
Nos pontos, reitera-se assiduamente que a Jurema é um "lugar" de onde se vem ou para onde se vai. Vários pontos cantados o expressam, preservando uma ambigüidade significativa do outro como eu: Eu venho de longe, do tronco do juremal. Quem vem? O caboclo índio étnico? O praticante do culto que realiza o ritual? O "guia" que "incorpora"? O Outro ou eu? Como a Jurema poderia representar-se, se se indetermina o sujeito relativamente ao qual ela se objetivaria?
Essas árvores, troncos e espiritualidade também são um sinal diacrítico da identidade étnica indígena. A Jurema é um traço significante que delimita o "ser" índio. No século XX, a perpetuação do seu culto (depois de meio milênio de perseguições) passou a ser um modo de reconhecer a etnia e processos de aculturação se inverteram em processos de etnogênese. Não apenas o Serviço de Proteção ao Índio (antecessor da FUNAI) o adotou como critério de reconhecimento de comunidades indígenas (o que paradoxalmente incentivou a preservação ou reinvenção do uso, a fabricação de tradições), como remanescentes de tribos indígenas competem entre si para se demarcar do culto caboclo e para preservar o segredo e afiançar a fidelidade dos seus ritos à origem, assegurando-se uma "pureza" étnica (Grünewald, 1999b).
De qualquer modo, cumpre sublinhar que este diacrítico apenas aparentemente se consubstancia num fato botânico. A concepção contemporânea de planta obviamente não é a mesma do universo indígena (haja vista a "imprecisão" taxonômica), embora raízes desta talvez aflorem na remissão da árvore a uma figura de mulher.
Quimicamente, a Jurema (Mimosa tenuiflora) apresenta um alcalóide da família dos alucinógenos indólicos (Carlini & Masur, 1989; Graeff, 1984). Mas a dimensão de sacralidade do seu consumo passa ao largo da descrição bioquímica dos seus efeitos e ambas são incompatíveis e verdadeiras à sua maneira. Por um lado, nem sempre as dosagens e os modos de consumo ritual que "abrem os encantos" seriam capazes de explicar as alterações de consciência por eles provocados. Por outro, quando se examina a Jurema por uma perspectiva estritamente simbólica, descobre-se que os pretensos símbolos universais nela envolvidos são realmente significáveis a partir de procedimentos muito particulares e de ações rituais, neurofisiologicamente eficientes.
Além disso, qualquer tentativa de reduzir a Jurema a uma superstição a ser esclarecida pela ciência moderna, ou como remetendo a uma tradição indígena degradada, pressuporia uma concepção linear do tempo, não autorizada pelos dados. O modo arcaico do seu consumo se mantém como núcleo de identidade e de resistência étnica indígena, garantia de reconstituição e continuidade, mas a Jurema também se internacionaliza como enteógeno (Grünewald, 1999a) e freqüentemente estas diversas dimensões convivem entre si, ao mesmo tempo e, às vezes, nas mesmas pessoas.
Antiga e contemporânea, na Jurema enraízam-se memórias sociais inconscientes. O seu arcaísmo e reflorescimento permitiriam transportar significâncias e revelar processos de conservação de tempos aparentemente perdidos, pela falta de documentos escritos e pela extinção física de povos?
Historicamente, o uso indígena da Jurema não foi meramente ritual e religioso. Perseguida pela piedade romana enquanto meio de cura, a Jurema foi tolerada quando ingerida em ocasiões de guerra (Andrade & Anthony, 1998). Os juremeiros são também guerreiros, histórica e miticamente falando e, certamente, não é à toa que, na sua versão antropomórfica, a Jurema possa se fazer acompanhar de flecha e bodoque.
Resistente, desde há muito cultivou-se além do território simbólico brasileiro estritamente indígena. Ramifica-se especialmente na memória e nas epopéias do homem nordestino, sendo celebrada por um cancioneiro popular que, às vezes, descreve o seu uso ritual e medicinal, sem por isso deixar de ser metafórico e simbólico. É principalmente (mas não exclusivamente) nesse âmbito que a Jurema é apreciada como comunhão com o sagrado cristão.
Mesmo entre as comunidades indígenas que a empregam diacriticamente como seu distintivo, a "pureza" étnica professada manifesta-se sincreticamente. A palavra anjucá significaria "anjo cá" e o vinho da Jurema seria o verdadeiro sangue de Cristo, pois quando foi derramado teria sido guardado junto a um pé de Jurema (Grünewald, 1999a).
Bastide (1945/2001) relata que os poderes associados à Jurema e que a distinguem das outras árvores são atribuídos pelos catimbozeiros ao fato de a Virgem, na fuga para o Egito, ter escondido o menino Jesus numa juremeira. A árvore "guarda" a Sagrada Família (Brandão & Rios, 2001) e, entre as mais importantes "falanges de espíritos" que a acompanham, incluem-se os caboclos do Rei Salomão (Carlini, 1993).
Em suma, em vez de proporcionar uma "sua" representação, a Jurema é multiplicadora de representações. Não é uma única planta, abrange a (polissemia da) mata inteira. Os seus pés são cidades. Afigura-se mulher, cabocla, morena, linda, índia... Poderosa, não obstante fruto de uma cultura oral, enraíza-se em letras: os "seus" índios ora se revelam seres espirituais assemelhados a construções literárias românticas ou a imagens de comemorações cívicas (Santos, 1995), ora, quando efetivamente pessoas e comunidades indígenas, pelo menos em parte, estas receberam tal identidade a partir de critérios disponíveis na literatura antropológica.
Porta-voz de um recalcado coletivo e significante do seu retorno, a Jurema guarda saberes sociais e memórias coletivas incompatíveis com a delimitação representativa. Fitomorfose humana, freqüentemente guarda sentidos corporais e espelha existências, aquém e além da estrita determinação de significados e da sua abstração em símbolo.

Cancioneiro da Jurema
Portentoso festival de deslocamentos, literalmente botânicos, condensados com aspectos cultuais que metonimicamente também podem denominar-se "Jurema", não adianta persegui-la para encontrar um "umbigo" botânico ou etnográfico que lhe ache uma realidade final, a qual seja a origem das suas representações e permita objetivá-la total e coerentemente. Real e sujeito, é Outro misterioso e antropomórfico. Conta-se, em parte, e as folhas das suas escrituras podem ser escutadas recorrendo-se aos poemas cantados que a celebram.
A música ritual relativa ao seu culto permite-lhe mostrar-se tal como se revela aos olhos da cultura dita popular. A Jurema é planta. Tem raiz, tronco, sementes, folhas, flores, perfume..., que não se resumem a figuras de linguagem, nem se achatam à mera botânica. A Jurema é algo mais: humana, mulher, morena, linda, consciência, líquido, sagrado. O seu perfume e as suas folhas comportam um "clima" que a consubstancia. Transportam caboclos. Os seus pés são cidades. Misteriosa, "reside" no centro da mata virgem. Lá nascem (polissêmicas) flores. É funda a raiz da Jurema e a comunhão da sua casca desperta consciência e transporta memória.
Muito profunda, irrecalcável retorno de raízes étnicas indígenas nos corpos sujeitos brasileiros, a Jurema retorna em mil e uma facetas que, longe de a objetivarem, refletem o ponto de vista dos seus interlocutores, sem prejuízo da sua sacralidade.
Muitos dos seus "pontos" dramatizam performances rituais e memórias sociais.8 As folhas da Jurema podem ser maceradas, mas a sua colheita também pode ser o transe como orientação para a vida dos médiuns e para a comunidade dos fiéis, humanas folhas desgarradas da árvore mãe, caboclos desenraizados que "incorporam" os do "Além" e com eles filialmente se aconselham.
Levar essa literatura a sério é tomar a letra ao pé do corpo. A Jurema se revela como uma espécie de poesia imanente ao imaginário brasileiro, cuja decifração implica um enredamento na nervura sutil das folhas e em contato com espinhos. Pouco importa a inconsciência de uma representação total dessa epifania por parte dos sujeitos populares atingidos pelo seu "tombo" (iniciação). Eles são mais do que sabem, pois a Jurema transborda a consciência.
Segue-se uma seleção de trechos e comentários de letras de músicas rituais de domínio (ou pelo menos de uso) público - na sua quase totalidade gravadas em terreiros umbandistas da Grande São Paulo - que não se pretende nem poderia ser exaustiva.
O método seguido consiste em tomar literalmente a sério o que se enuncia pelo multifacetado repertório musical ritualmente eficaz. Não se leva em conta os significados conscientemente atribuídos pelos participantes aos seus ritos, mas tão somente o que as letras implicitamente deixam às claras, seja por eles explicitado ou não (isto é, dá-se ouvidos ao Outro, escuta-se o inconsciente).
Cada cantiga ecoa frases de uma narrativa do Outro, reveladora de memórias sociais, expectativas históricas e principalmente de processos coletivos de cognição, não redutíveis a representações nem totalizáveis por sujeitos individuais.
O ponto fulcral é que a luminosidade da Jurema (inclusive a alucinose que suscita) afirma-se não ser da ordem da ilusão. Para os que a cultuam, impõe-se a tarefa de ter coragem para ouvir a sua verdade e se aprofundar no próprio ser: A Jurema não engana ninguém.
A declaração, mais do que descreve, firma e confirma o seu valor e seu uso ritual. O estatuto dos enunciados que a revelam apresenta-se mais propriamente performativo do que descritivo. Em conformidade com esse modo de acontecer do fenômeno religioso, juízos de realidade extemporâneos não podem pôr entre parênteses as implicações hermenêuticas, éticas e metodológicas da decisão de dar crédito ou não à sua narrativa.
O acesso aos recônditos da Jurema depende de um trabalho de interpretação: Oh! Jurema Preta, senhora rainha. Dona da cidade, mas a chave é minha: há "chaves" para conhecer os seus segredos. O seu culto apela a um empenho e competência hermenêuticos, ritualmente reafirmados. Alteridade enunciante, é senhora dos seus domínios. O segredo guarda-se e narra-se a quem quer.
Mas os seus desígnios não são arbitrários. Afirmam-se obedientes ao "superior": Na sua aldeia,lá na Jurema, não se faz nada sem ordem suprema. O seu culto ordena-se pelo mais elevado. É profundo: Tempo disse, Tempo dirá, que é funda a raiz da Jurema.
O tempo, sacralizado, afirma-se como perene, garante o culto de abissais raízes de árvores genealógicas indígenas e de estados alterados de consciência.
Comungá-la implica em procedimentos precisos e rigorosos, tanto "técnica" como eticamente: Oi lá nas matas, lá na Jurema, é uma lei severa, é uma lei sem pena.
Selva, a Jurema é uma lei sem pena, inflexível. Mas, paradoxalmente, piedosa. É uma cabocla de pena, o que permite sublinhar um traço notável da significância inconsciente, social e psíquica: os elementos significantes compõem cenas, presenças, mas não objetivam conteúdos. Podem ter usos que, do ponto de vista da ficção representativa, parecem contraditórios.
A Jurema é um clube para caboclos, uma ordem para os que se vestem de pena (se recobrem de misericórdia, conforme o implícito contexto significante da língua portuguesa, independentemente da consciência dos informantes poder ou não resgatá-lo). A Jurema convida e preside: Se ele é caboclo e se veste de pena, venha ver as forças que tem a Jurema.
Ao vestir-se de pena, a Jurema (também) é alada (elevada) e colorida (luminosa). Note-se o cunho sensorial e imediato das metáforas, imagens para levar ao pé do corpo, sem distinção entre coisas e significância. São quase tácteis e veiculam valores. Oferecem-se literalmente ao "olhar".
Os caboclos, físicos ou metafísicos, acodem performativamente ao chamado para "ver" - implícita alusão à "luminosidade" (alucinose) da Jurema. Ao contemplá-la, Outro sujeito, são capturados pela sua luz, vivenciada como olhar: como é brilhante o seu olhar.
A sua associação a rios é uma constante - Jurema sentada na beira de um rio - e os pontos insistem na temática do "ver": Eu vi a Cabocla Jurema se banhando na cachoeira. Mostra-se nas águas. Revela-se em águas que vêm do alto.
Como essa linguagem não é representativa, apenas ilusoriamente se poderia confundir esse tipo de "altura" com uma localização espacial (vide Corbin, 1971) ou um acidente geográfico: Eu venho das águas claras, eu venho do alto mar. Eu venho de muito longe, do tronco do juremal. A Jurema é grandiosa. Acima de qualquer realismo, a sua raiz sertaneja implanta-se em alto mar. As águas claras, do longínquo alto mar, circulam pelo tronco do juremal.
Além de rios e cachoeiras, literalmente, há mar no juremar: A marola lá do mar, aí vem rolando, e a cabocla Jurema é quem vem chegando. A par da sonoridade, também a cor das matas pode ligar a cabocla ao mar: O seu penacho é verde, é da cor do mar. Longe de qualquer veleidade de representação objetiva, pura significância ao pé do ver.
No caminho da significância, a liquidez da Jurema é múltipla, não se resumindo à seiva e a seus preparados. Tentar explicá-lo apenas por a planta manter-se viçosa no meio da seca é perseverar na linguagem do erro e do acerto representativo. Não há realismo. A moça linda, índia, pode ser sereia: Cabocla da juremeira, sereia em alto mar.
Na mesma linha, a luminosidade marítima pode literalmente consubstanciar-se em estrelas ...: Sou a Cabocla Jurema, sou a Estrela do Mar. A polissemia da expressão navega por todas as combinações de sentidos, do animal de mesmo nome até à estrela que orna a cabeça da mais comum imagem umbandista de Iemanjá.
O brilho estelar em pauta espraia-se pelo firmamento: O seu manto é de estrelas, ó Jurema, sete estrelas "lhe" alumiam, ó Jurema.9 A Jurema reveste-se de luz e reverbera entre "alto" e "mar": No céu tem estrelas, no mar também tem, salve a estrela do céu, salve a Estrela do Mar.
Mais uma vez, goram-se as expectativas de encontrar qualquer laivo de realismo. A estrela não se prende ao firmamento e reside Lá no juremal, onde canta o rouxinol, onde mora a estrela guia, onde tem raiar do sol.
É impossível reduzi-la. Alcança-se em imagens, mas em realidade não se captura. Está além da imaginação: Ela vem de longe, de longe sem imaginar. No capacete três penas, no braço uma cobra coral. Ela é Jurema, cabocla primeira, rainha do meu jacutá.
Posto que é impossível representá-la, há liberdade para imaginá-la em forma humana, o que permite que a pluralidade dos seus sentidos se dirija a todos os sentidos humanos. Configura-se feminina e bela. Enuncia-se mulher, não obstante planta: Que moça linda é a cabocla Jurema. A sua atração é envolvente e (quase) sensorial. Mostra-se humana e sedutora.Assenhoreia-se dos fiéis prendendo o olhar. Chama a atenção. Cativa.
A antropomorfose permite atingir múltiplas facetas do praticante. O encanto pelo espírito pode ser também sensual. Desta forma, o muito estranho, Outro longínquo, mostra-se à medida humana. Os diversos modos como a sua ação possa se sentir vão tender a se configurar em vestes e enfeites de mulher: A Jurema é muito linda, com seu capacete de pena.
Como o significante "pena" é comumente utilizado como metonímia de caboclo, um capacete de penas também significa que a Jurema carrega na sua cabeça muitos índios (as suas "luzes", os seus "falangeiros"), o que faz sentido na organização do ritual, já que a ela é atribuído o papel de aconselhar e orientar "entidades" indígenas que incorporam nos terreiros.
Mas não é apenas na cabeça que a cabocla, linda, se veste de penas. A roupa que revela o seu corpo de mulher tem a mesma consistência plumária e luminosa: Mas como é linda a Cabocla Jurema, com seu saiote de pena. No âmbito dessa linguagem, tão superlativamente significativa para além de abstrações, não é possível separar beleza de moralidade e de sensualidade. A sedução da Jurema encanta todas as esferas da sensibilidade.
O seu conhecimento formula-se em muitos sentidos. Compõe-se de palavras e de luz, de cantos e de imagens. A "ciência" da Jurema é inerentemente bela. Dessa forma, reforça-se o seu poder de atração sobre o humano. Superlativamente atraente, é a própria soberania sobre o belo: É rainha da beleza.
Imagens como "penas" presentificam-na metonimicamente e instam ao "ver", ao imaginar, ao concentrar-se na sua "luminosidade". Tal contato e possessão estabelecem-se (fora da esfera intelectual e proposicional) como uma comoção emocional e estética, inefável, que, na linguagem do culto, é aludida na forma de profusas referências à beleza da Jurema: Eu tive um sonho lá nas matas da Jurema, nunca vi tanta beleza, cidade do juremal.
A Jurema é beleza e consciência atraentes. Interpela por meio de significâncias sinestésico-sensoriais. Luz em forma de planta (o que alude à materialidade do seu potencial alucinógeno), a sua cabeça é comparada ao Sol: Que lindo capacete de pena, que tem a Cabocla Jurema. Ele é tão lindo como a luz do Sol. É interpretada como manifestação vegetal da luminosidade solar: A coroa dela é um girassol.
O Outro é outra planta. A coroa da rainha é um girassol. A sensível alusão à superlativa e unificante luminosidade solar é patente. É sentida como sol em forma de planta, sem nenhuma necessidade de esgotar o sentido de sol numa coleção de significados.
A proliferação das suas fitofanias pode ampliar-se conforme a necessidade ritual e a liberdade poética: Jurema vem e traz as rosas, Jandira é quem traz o jasmim. As duas na umbanda são irmãs, minhas caboclas tenham pena de mim.
Pode igualmente dizer-se "ao lado" de uma outra importante presença do sagrado em forma de planta na cultura religiosa brasileira: Ela é Jurema, Aroeira, ela vem das matas, Aroeira, ela desce o rio, Aroeira, e sua flecha mata, Aroeira.
Associa-se a outras plantas sagradas, escorre no rio, é certeira. A sua polifonia imaginal pode expressar-se numa rica e multifacetada evocação da sua presença. A objetividade representativa dissolve-se em composição alusiva a algo absolutamente insubstantivo.
Inúmeras vezes, de planta específica, alarga-se ao conjunto da mata, floresta, pois, na linguagem dos "encantados", os lugares de encantamento, as suas "moradas", participam do seu ser, e Ela mora na floresta.
Na linguagem do culto, floresta (ou mata, ou macaia) opõe-se à aldeia. E aldeia tanto pode significar a comunidade dos caboclos, o lugar espiritual dessas "entidades", como referir-se à comunidade do terreiro. Portanto, é cabível interpretar floresta como alteridade relativamente ao propriamente humano, apresente-se este física ou metafisicamente ("médium" ou "entidade"). A Jurema é Outro, longínquo e misterioso. É a própria mata virgem - Estrela d’Alva é minha guia, alumeia sem parar (ou corre o mundo sem parar, uma variante). Ilumine a mata virgem, cidade do juremal (ou cidade do ajucá, segundo outra variante) - e a floresta é uma cidade de seres espirituais.
Não há dificuldade em assimilar a mata aos mistérios e desafios do não familiar, não humanizado, até porque a mitologia dos orixás também ritualmente permite essas aproximações. Mas, o culto da Jurema, celebrado com o corpo inteiro, não permite a redução da mata a uma alegoria do desconhecido e da inconsciência: No centro da mata virgem eu plantei raiz. Nasceu flores. O praticante, ao implantar-se no centro da mata virgem (no âmago da Jurema), fazendo-se outro, índio, colhe flores: O perfume da flor da Juremeira se espalha por todo o juremal. A benção dos caboclos de Aruanda, prá salvar filhos de Umbanda, é a mandado de Oxalá.10 Atendendo à ordem divina, o perfume da juremeira se espalha por todo o juremal. É a bênção dos caboclos de Aruanda. Os caboclos que se incorporam, portanto, depreendem-se da flor da juremeira. Acontecem em imagens poéticas que se presentificam sensorialmente e perfumam a consciência. Vêm da mata: Ê ê ê boca da mata, deixa esses caboclos passar, boca da mata.
Todas as cenas performáticas do transe podem apresentar-se antropomorficamente. Os portões da mata são a sua boca. A boca de uma mulher que profere sentidos enunciáveis por caboclos: Quando o caboclo bate a folha da jurema e preto velho traz arruda e guiné, eles vêm trabalhar na lei de umbanda.11
Trabalhar na lei de umbanda, para um caboclo, é bater folha da Jurema. Aprofundar essa estrofe implicaria num mergulho nos significados rituais associados ao uso ritual do vegetal. Limitando-nos ao esclarecimento das ressonâncias antropomórficas de "folha", cumpre dizer que, no âmbito dessa "leitura" presentificante, é importante não esquecer que cultualmente a Jurema é uma "árvore de ciência" e que as suas folhas podem ser lidas como páginas de um livro.
As folhas também podem ser os médiuns, que os caboclos vão apanhando no chão: O vento está soprando na mata, jogando as folhas da Jurema no chão. O vento está soprando, as folhas estão caindo, caboclos vão apanhando, é lá no chão. Assumida como mãe, é da Jurema que se desprendem as vidas humanas, jogadas na terra, mas recolhidas e cuidadas pelos caboclos que, para tanto, dependem de autorização superior: Ele é caboclo em qualquer lugar, ele não apanha a folha da Jurema sem ordem suprema de Pai Oxalá. A par de uma referência ao ser caboclo como obediente a Deus, nesse ponto percebe-se claramente a fusão entre o metafórico e o literal na linguagem do transe, pois as folhas vegetais são efetivamente colhidas segundo prescrições religiosas.
Numa outra versão fica claro que as folhas (também) são os médiuns. A Jurema aparece como origem e os caboclos surgem como mediadores de re-ligação: As folhas da Jurema o vento vai levando, o vento vai levando, e os caboclos vão apanhando. A incorporação é significada como tempestade, sopro (o que permite dar uma imagem dos movimentos convulsivos que habitualmente acompanham a entrada e saída do transe). Os movimentos corporais, os balanços da incorporação, parecem o sacudimento de uma árvore pela ventania. Mais uma vez, não importam os sentidos inscritos na ordem objetiva do mundo, mas o limiar de sentido inscrito na junção entre corpo e imaginação.
Não obstante a total falta de realismo (e talvez por isso mesmo), cenas descritoras da vinda do Outro em direção ao "eu" possuem uma notável eficácia imaginal enquanto fatores indutores do transe.Em vez de concentração e invocação por parte dos cultuantes, é como se o Outro se concentrasse no local e tempo do ritual: Sua flecha caiu serena ó Jurema, dentro deste congá. Essa inversão especular é um traço bastante característico dessa linguagem.
A flecha da Jurema pode ser uma metonímia da sua presença. Como todos os adereços das "entidades", alude a uma parte da funcionalidade do ser Jurema que, mais do que representá-la, permite compreender estético-sensorialmente as ações e interpelações do Outro, personificado em floresta e mulher. "Serve" para defesa e para a caça. Com ela, a "índia" protege e alimenta os seus filhos. Também "caça" os seus fiéis. Mas a sua flecha cai serena. A Jurema "é" paz. Comporta serenidade.2
Como sói acontecer com muitos pontos, este admite variações: Sua flecha caiu certeira, Jurema, dentro desse congá. Nessa estrofe sublinha-se a precisão da Jurema e reitera-se o seu acerto. Performativamente, a invocação inclui um apelo, um desejo de eficiência e a determinação de uma resolução eficaz. Outra variante multiplica o número de flechas: Suas flechas caíram serenas, morena, dentro deste congá.
Em todos os casos, sucede-se uma narrativa incompatível com o achatamento proposicional. Encontra-se, mais do que uma representação falsa de um estado de coisas (preconceito que implicaria em reduzir o discurso do transe à ilusão), um apelo performático a uma alteridade alusiva ao próprio ser e proposta como sujeito enunciante de uma narrativa.
A serenidade que se supõe às flechas que atingem o espaço ritual significa muito mais um apelo a uma incorporação tranqüila - uma vez que a flecha é metonímia da ação que é ser Jurema enquanto toca aos circunstantes - do que propriamente descreve o momento de entrada em transe, freqüentemente quase convulsivo - o que se simboliza e se reconhece em pontos como A Cabocla Jurema quando vem na aldeia faz a mata balançar.
Pontos que, a par de explicitarem o espelhamento antropomórfico da mata no corpo, abrem caminho à integração significativa desses polissêmicos balanços, por vezes veementes, para não dizer "violentos": Olha o tombo da Jurema, no balanço que ela dá.
A Jurema sacode o corpo e balança existências, qual "mãe" que prepara os filhos para a vida: Nas matas que ela domina, não deixa os filhos tombar. Aqueles que a obedecem aprendem a não cair. Permanecem atentos. Concentrados: No centro da mata virgem, uma linda cabocla eu vi. Com seu saiote de penas, é a Jurema filha de Tupi.
A "índia" filia-se ao ancestral oprimido. Reabilita-o e dá-lhe feição metafísica. Institui-o como antepassado. A letra mostra-a como forma de reconhecimento e admissão do Outro aborígene, bem como de filiação a Outro ameríndio.
O transe é uma forma de aproximação ao distante e de encontro com o estranho familiar: Os portões da mata eu já mandei abrir. Quem tem sangue de caboclo, está na hora de sair. Como cidade, a mata tem portões. A saída dos caboclos, a abertura dos portões, significa a permissão para a entrada na consciência dos médiuns (ou dito de outro modo, a autorização para a alteração da sua consciência). É preciso ter sangue de caboclo, ser seu "filho".
No final de uma gira, na hora da desincorporação, o eu retoma do outro o seu lugar, a consciência volta ao normal: Caboclo vai embora, prá cidade da Jurema. Os caboclos retornam para o "lugar" de onde vieram e esse pode ser um momento de reafirmar a ambigüidade entre "eu" e "outro", que se tem evidenciado nuclear no processo do transe - Vou prá Jurema, quem vai embora sou eu - e que é típica de pontos de incorporação.
Eu venho de muito longe, do tronco do juremal. Quem vem? Um caboclo ou "eu"? Outro, ou o sujeito "dissociado"?
A lonjura do tronco igualmente ecoa memórias sociais inconscientes vinculadas à vastidão de raízes indígenas, donde brotam e onde se implicam os ancestrais "falangeiros da Jurema". Afirma-se uma filiação a um tronco genealógico, presente e atual, uma identificação que também é uma adoção pelo Outro, bem como um compromisso em escutar as raízes: Ele jurou e tornou a jurar, de ouvir os conselhos que a Jurema lhe dá. Não apenas ontem, mas sempre: Ele jurou e sempre jurará, pelos conselhos que a Jurema vai lhe dar.
Consciência alterada, abissal, a Jurema é conselheira. Ela fornece instruções aos que com ela operam. Para isso a comungam nos rituais mais próximos das raízes, ou lhe prestam atenção, mesmo sem o recurso à bebida. Ela transgride os limites das várias imagens que a tentam conter. Na verdade é ela que, conforme o conceito que dela se tenha, revela quem são os que a "representam": bioquímicos, índios, catimbozeiros, missionários, botânicos, umbandistas, sociólogos, psiquiatras etc.
A sua docilidade às variadas formas de interpretá-la evidencia que escorre por entre conceituações e escapa às tentativas de objetivação. Acontece como Outro enunciante que, ao depor-se, situa os seus interlocutores. Narra-se de maneira complexa e furtiva a tentativas de definição. Renunciando-se ao viés psicologista da Psicanálise, a Jurema pode e deve ser tratada como Outro interpelante.
Dar ouvidos ao Outro não significa afiançá-lo existente, nem tomar partido contrário à sua existência. Aliás, tranqüilamente não realistas, as suas enunciações mostram-na despreocupada quanto a decisões metafísicas sobre o estatuto objetivo da sua realidade.
Presentifica-se poeticamente, certeira e serenamente, conforme razões não domesticáveis cognitivamente.
O simbolismo da planta deriva dos galhos vegetais para significados na língua. A Jurema, árvore e mulher, promove um estranhamento do humano e uma humanizante natureza. As suas folhas, flores, troncos e raízes deslizam polissemicamente, irrealizam-se, e culminam em processos no âmbito dos quais a planta pode ser signo de um símbolo e o símbolo presentificar verdadeiramente a planta. Não faz sentido a dicotomia entre coisa e signo.

Autor: José Francisco Miguel Henriques Bairrão - Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP
Texto recebido por e-mail, enviado por taranissp@hotmail.com - achei muito interessante - e se você gosta de ler pode fazê-lo na integra, clicando aqui , pois a parte aqui exposta e uma pequena parte do mesmo, conforme o recebemos.

O Cachimbo
O cachimbo é um objeto sagrado presente em todo ritual Xamânico.
É através dele que o Xamã envia suas preces ao Grande Espírito para realizar suas curas e também simboliza a paz entre todas as Nações, Tribos e Clãs.
O fornilho do cachimbo representa o aspecto feminino de todas as coisas vivas, e, o tubo é o símbolo do aspecto masculino em todas as formas de vida.
O ato de colocar o tubo no fornilho simboliza união, criação e fertilidade.
Quando o cachimbo é abastecido, cada pitada de fumo é abençoada e são convidados todas os espíritos da natureza e dos antepassados a entrarem no cachimbo para serem honrados e louvados.
O ato de fumar o cachimbo é de suprema importância ritualística e é necessário que todo o conteúdo do fornilho seja fumado. Se o fogo que representa a eterna Chama da Vida, não toca e nem incendeia o fumo, o espírito que esta lá dentro não pode ser libertado em fumaça.
Esvaziar um fornilho que não foi totalmente fumado é cometer desonra aos espíritos que vieram fumar conosco.
A fumaça que sai do cachimbo representa prece visualizada.
Quando se partilha o mesmo cachimbo fazemos a união com todos os nossos “Parentes” e somos lembrados de que a harmonia é alcançada através da união com todos os seres que nos cercam (minerais, plantas, animais, humanos, espíritos).
Para se ser “Portador de Cachimbo” é necessário um longo caminho de aprendizado.
Marilda Bourbon
"Nós não escolhemos o cachimbo, ele nos escolhe"
"Ser o guardião de um petenguá é uma tarefa de grande responsabilidade."