Ramificações da Jurema
A palavra Jurema apresenta diversos significados, os quais não se resumem a usos distintos do seu emprego, na medida em que podem aparecer interligados. Poderia supor-se ter havido um significado inicial, progressivamente encoberto pela perda de memória e por uma mentalidade popular confusa.
Seria igualmente possível retalhar a Jurema em vários significados, mais ou menos arbitrariamente ligados à mesma palavra.
Ao se examinar mais de perto essas possibilidades, há de se convir que meramente reiteram uma pré-concepção de objeto e de palavra, insistindo em deixar no limbo a sutileza e a riqueza da interdependência entre todas as suas acepções.
Proceder dessa forma é, também, descartar ou menosprezar a enunciação popular e deixar passar uma oportunidade única de seguir traços da memória social brasileira e de acompanhar as suas deambulações. Na contramão dessa tendência, experimente-se dar ouvidos às enunciações da Jurema, nas diversas acepções em que ela se revela:
Jurema é uma árvore, mas não exatamente. É uma e outras. A sua identificação botânica permanece relativamente indefinida.5 O nome pode se referir (principalmente) a espécies dos gêneros Mimosa, Acácia e Pithecellobium (Sangirardi Jr, 1983, citado por Grünewald, 1999a), que não espelham as denominações populares de várias árvores como Jurema (Preta, Branca, Vermelha, etc.), as quais por sua vez admitem variação regional.6
Jurema é uma bebida. A partir de partes daquelas plantas, nem sempre as mesmas (as mais referidas são a Mimosa tenuiflora e a Mimosa verrucosa), obtém-se um líquido de uso religioso e medicinal. As fórmulas do seu preparo, os tecidos vegetais utilizados e as dosagens, assim como a combinação com outros ingredientes, são variáveis.
Jurema é uma cerimônia religiosa (diversamente celebrada por índios ou caboclos) no âmbito da qual aquela bebida é comungada. Às vezes distinguida como uma religião específica no complexo cenário da espiritualidade brasileira, mais comumente o culto da Jurema apresenta-se difuso em práticas religiosas nas quais pode ter um papel mais ou menos central: pajelança, toré, catimbó, umbanda, candomblé de caboclo etc.
Jurema é uma "entidade" espiritual que se manifesta no transe de adeptos dessas religiões (Anthony, 2001). Ou uma classe, um tipo de "entidades", havendo muitas Juremas. A Jurema que se manifesta nesses cultos pode caracterizar-se de maneira bastante variada em diferentes práticas e em diversos núcleos da mesma religião. Às vezes, a sua caracterização pode ser diversa no mesmo núcleo, ou até mesmo Juremas diversas podem incorporar na mesma médium.
Jurema também pode ser o local de culto e oração: a mesa da Jurema ou o "congá" umbandista.
Jurema é o "mundo espiritual" de onde provêm os encantados que se manifestam nas sessões.
Jurema é o "plano espiritual" dos espíritos cultuados na difusa "espiritualidade brasileira", que se apresentam como índios.
Jurema é uma índia metafísica. Atende pelo nome de Jurema uma apresentação antropomórfica do sagrado florestal. Em rituais, convivem a bebida e a "cabocla" do mesmo nome (Assunção, 2001). Una ou duas?
Jurema pode ser uma "linha". A "linha" das "caboclas de Oxossi" (antropomorfoses femininas de epifanias florestais, "encantos da mata"). É uma e múltiplas.
A linha da Jurema pode não se restringir à "falange" de "espíritos da mata femininos". Há "espíritos masculinos" que são juremeiros.
Não obstante sertaneja e planta, a Jurema é hoje associada a caboclas da água e especialmente do mar (conforme o som "juremar" e a significância da cor comum ao oceano e à mata).
Jurema é um objeto. Pintura ou estatueta de uma índia, com traços que podem variar - as suas apresentações icônicas estão longe de serem tratadas como meras representações - na prática ritual, podendo receber a atenção, cuidado e respeito devidos à própria "realidade".
Mas a sua imagem não necessariamente se corporifica em objeto material. Pode ser aparição objetivamente percebida por "videntes", com a mesma qualidade da percepção de uma pessoa comum, como pode igualmente surgir como uma "imagem mental" parecida com as cenas oníricas, dela se distinguindo por acontecer em vigília e por outros sinais que variam bastante de informante para informante (eventos concomitantes como cantos de pássaros ou vôos de borboletas, nitidez da imagem, "avisos" e "confirmações" etc.).
Jurema é uma cidade. A cidade da Jurema, uma cidade do Além. Mas muito concretamente a cidade da Jurema pode consistir numa coleção de copos e taças com diversas bebidas que, com fins rituais, se assentam na "mesa da Jurema"; bem como pode ser uma juremeira (árvore) ou um juremal.
Jurema é a mata. A cidade da Jurema pode alargar-se do juremal à totalidade e variedade da floresta, no seu conjunto.
Jurema é um tronco (de juremeira). Um galho que ritualmente marca um ponto de sacralidade no lugar do culto. Mas o tronco do juremal também é o lugar de onde vêm os caboclos e mestres do seu culto, o que é literalmente verdadeiro: mais do que uma figura de linguagem, a Jurema ingerida comumente é preparada a partir da casca do tronco (ou da casca da raiz).
Nos pontos, reitera-se assiduamente que a Jurema é um "lugar" de onde se vem ou para onde se vai. Vários pontos cantados o expressam, preservando uma ambigüidade significativa do outro como eu: Eu venho de longe, do tronco do juremal. Quem vem? O caboclo índio étnico? O praticante do culto que realiza o ritual? O "guia" que "incorpora"? O Outro ou eu? Como a Jurema poderia representar-se, se se indetermina o sujeito relativamente ao qual ela se objetivaria?
Essas árvores, troncos e espiritualidade também são um sinal diacrítico da identidade étnica indígena. A Jurema é um traço significante que delimita o "ser" índio. No século XX, a perpetuação do seu culto (depois de meio milênio de perseguições) passou a ser um modo de reconhecer a etnia e processos de aculturação se inverteram em processos de etnogênese. Não apenas o Serviço de Proteção ao Índio (antecessor da FUNAI) o adotou como critério de reconhecimento de comunidades indígenas (o que paradoxalmente incentivou a preservação ou reinvenção do uso, a fabricação de tradições), como remanescentes de tribos indígenas competem entre si para se demarcar do culto caboclo e para preservar o segredo e afiançar a fidelidade dos seus ritos à origem, assegurando-se uma "pureza" étnica (Grünewald, 1999b).
De qualquer modo, cumpre sublinhar que este diacrítico apenas aparentemente se consubstancia num fato botânico. A concepção contemporânea de planta obviamente não é a mesma do universo indígena (haja vista a "imprecisão" taxonômica), embora raízes desta talvez aflorem na remissão da árvore a uma figura de mulher.
Quimicamente, a Jurema (Mimosa tenuiflora) apresenta um alcalóide da família dos alucinógenos indólicos (Carlini & Masur, 1989; Graeff, 1984). Mas a dimensão de sacralidade do seu consumo passa ao largo da descrição bioquímica dos seus efeitos e ambas são incompatíveis e verdadeiras à sua maneira. Por um lado, nem sempre as dosagens e os modos de consumo ritual que "abrem os encantos" seriam capazes de explicar as alterações de consciência por eles provocados. Por outro, quando se examina a Jurema por uma perspectiva estritamente simbólica, descobre-se que os pretensos símbolos universais nela envolvidos são realmente significáveis a partir de procedimentos muito particulares e de ações rituais, neurofisiologicamente eficientes.
Além disso, qualquer tentativa de reduzir a Jurema a uma superstição a ser esclarecida pela ciência moderna, ou como remetendo a uma tradição indígena degradada, pressuporia uma concepção linear do tempo, não autorizada pelos dados. O modo arcaico do seu consumo se mantém como núcleo de identidade e de resistência étnica indígena, garantia de reconstituição e continuidade, mas a Jurema também se internacionaliza como enteógeno (Grünewald, 1999a) e freqüentemente estas diversas dimensões convivem entre si, ao mesmo tempo e, às vezes, nas mesmas pessoas.
Antiga e contemporânea, na Jurema enraízam-se memórias sociais inconscientes. O seu arcaísmo e reflorescimento permitiriam transportar significâncias e revelar processos de conservação de tempos aparentemente perdidos, pela falta de documentos escritos e pela extinção física de povos?
Historicamente, o uso indígena da Jurema não foi meramente ritual e religioso. Perseguida pela piedade romana enquanto meio de cura, a Jurema foi tolerada quando ingerida em ocasiões de guerra (Andrade & Anthony, 1998). Os juremeiros são também guerreiros, histórica e miticamente falando e, certamente, não é à toa que, na sua versão antropomórfica, a Jurema possa se fazer acompanhar de flecha e bodoque.
Resistente, desde há muito cultivou-se além do território simbólico brasileiro estritamente indígena. Ramifica-se especialmente na memória e nas epopéias do homem nordestino, sendo celebrada por um cancioneiro popular que, às vezes, descreve o seu uso ritual e medicinal, sem por isso deixar de ser metafórico e simbólico. É principalmente (mas não exclusivamente) nesse âmbito que a Jurema é apreciada como comunhão com o sagrado cristão.
Mesmo entre as comunidades indígenas que a empregam diacriticamente como seu distintivo, a "pureza" étnica professada manifesta-se sincreticamente. A palavra anjucá significaria "anjo cá" e o vinho da Jurema seria o verdadeiro sangue de Cristo, pois quando foi derramado teria sido guardado junto a um pé de Jurema (Grünewald, 1999a).
Bastide (1945/2001) relata que os poderes associados à Jurema e que a distinguem das outras árvores são atribuídos pelos catimbozeiros ao fato de a Virgem, na fuga para o Egito, ter escondido o menino Jesus numa juremeira. A árvore "guarda" a Sagrada Família (Brandão & Rios, 2001) e, entre as mais importantes "falanges de espíritos" que a acompanham, incluem-se os caboclos do Rei Salomão (Carlini, 1993).
Em suma, em vez de proporcionar uma "sua" representação, a Jurema é multiplicadora de representações. Não é uma única planta, abrange a (polissemia da) mata inteira. Os seus pés são cidades. Afigura-se mulher, cabocla, morena, linda, índia... Poderosa, não obstante fruto de uma cultura oral, enraíza-se em letras: os "seus" índios ora se revelam seres espirituais assemelhados a construções literárias românticas ou a imagens de comemorações cívicas (Santos, 1995), ora, quando efetivamente pessoas e comunidades indígenas, pelo menos em parte, estas receberam tal identidade a partir de critérios disponíveis na literatura antropológica.
Porta-voz de um recalcado coletivo e significante do seu retorno, a Jurema guarda saberes sociais e memórias coletivas incompatíveis com a delimitação representativa. Fitomorfose humana, freqüentemente guarda sentidos corporais e espelha existências, aquém e além da estrita determinação de significados e da sua abstração em símbolo.

Cancioneiro da Jurema
Portentoso festival de deslocamentos, literalmente botânicos, condensados com aspectos cultuais que metonimicamente também podem denominar-se "Jurema", não adianta persegui-la para encontrar um "umbigo" botânico ou etnográfico que lhe ache uma realidade final, a qual seja a origem das suas representações e permita objetivá-la total e coerentemente. Real e sujeito, é Outro misterioso e antropomórfico. Conta-se, em parte, e as folhas das suas escrituras podem ser escutadas recorrendo-se aos poemas cantados que a celebram.
A música ritual relativa ao seu culto permite-lhe mostrar-se tal como se revela aos olhos da cultura dita popular. A Jurema é planta. Tem raiz, tronco, sementes, folhas, flores, perfume..., que não se resumem a figuras de linguagem, nem se achatam à mera botânica. A Jurema é algo mais: humana, mulher, morena, linda, consciência, líquido, sagrado. O seu perfume e as suas folhas comportam um "clima" que a consubstancia. Transportam caboclos. Os seus pés são cidades. Misteriosa, "reside" no centro da mata virgem. Lá nascem (polissêmicas) flores. É funda a raiz da Jurema e a comunhão da sua casca desperta consciência e transporta memória.
Muito profunda, irrecalcável retorno de raízes étnicas indígenas nos corpos sujeitos brasileiros, a Jurema retorna em mil e uma facetas que, longe de a objetivarem, refletem o ponto de vista dos seus interlocutores, sem prejuízo da sua sacralidade.
Muitos dos seus "pontos" dramatizam performances rituais e memórias sociais.8 As folhas da Jurema podem ser maceradas, mas a sua colheita também pode ser o transe como orientação para a vida dos médiuns e para a comunidade dos fiéis, humanas folhas desgarradas da árvore mãe, caboclos desenraizados que "incorporam" os do "Além" e com eles filialmente se aconselham.
Levar essa literatura a sério é tomar a letra ao pé do corpo. A Jurema se revela como uma espécie de poesia imanente ao imaginário brasileiro, cuja decifração implica um enredamento na nervura sutil das folhas e em contato com espinhos. Pouco importa a inconsciência de uma representação total dessa epifania por parte dos sujeitos populares atingidos pelo seu "tombo" (iniciação). Eles são mais do que sabem, pois a Jurema transborda a consciência.
Segue-se uma seleção de trechos e comentários de letras de músicas rituais de domínio (ou pelo menos de uso) público - na sua quase totalidade gravadas em terreiros umbandistas da Grande São Paulo - que não se pretende nem poderia ser exaustiva.
O método seguido consiste em tomar literalmente a sério o que se enuncia pelo multifacetado repertório musical ritualmente eficaz. Não se leva em conta os significados conscientemente atribuídos pelos participantes aos seus ritos, mas tão somente o que as letras implicitamente deixam às claras, seja por eles explicitado ou não (isto é, dá-se ouvidos ao Outro, escuta-se o inconsciente).
Cada cantiga ecoa frases de uma narrativa do Outro, reveladora de memórias sociais, expectativas históricas e principalmente de processos coletivos de cognição, não redutíveis a representações nem totalizáveis por sujeitos individuais.
O ponto fulcral é que a luminosidade da Jurema (inclusive a alucinose que suscita) afirma-se não ser da ordem da ilusão. Para os que a cultuam, impõe-se a tarefa de ter coragem para ouvir a sua verdade e se aprofundar no próprio ser: A Jurema não engana ninguém.
A declaração, mais do que descreve, firma e confirma o seu valor e seu uso ritual. O estatuto dos enunciados que a revelam apresenta-se mais propriamente performativo do que descritivo. Em conformidade com esse modo de acontecer do fenômeno religioso, juízos de realidade extemporâneos não podem pôr entre parênteses as implicações hermenêuticas, éticas e metodológicas da decisão de dar crédito ou não à sua narrativa.
O acesso aos recônditos da Jurema depende de um trabalho de interpretação: Oh! Jurema Preta, senhora rainha. Dona da cidade, mas a chave é minha: há "chaves" para conhecer os seus segredos. O seu culto apela a um empenho e competência hermenêuticos, ritualmente reafirmados. Alteridade enunciante, é senhora dos seus domínios. O segredo guarda-se e narra-se a quem quer.
Mas os seus desígnios não são arbitrários. Afirmam-se obedientes ao "superior": Na sua aldeia,lá na Jurema, não se faz nada sem ordem suprema. O seu culto ordena-se pelo mais elevado. É profundo: Tempo disse, Tempo dirá, que é funda a raiz da Jurema.
O tempo, sacralizado, afirma-se como perene, garante o culto de abissais raízes de árvores genealógicas indígenas e de estados alterados de consciência.
Comungá-la implica em procedimentos precisos e rigorosos, tanto "técnica" como eticamente: Oi lá nas matas, lá na Jurema, é uma lei severa, é uma lei sem pena.
Selva, a Jurema é uma lei sem pena, inflexível. Mas, paradoxalmente, piedosa. É uma cabocla de pena, o que permite sublinhar um traço notável da significância inconsciente, social e psíquica: os elementos significantes compõem cenas, presenças, mas não objetivam conteúdos. Podem ter usos que, do ponto de vista da ficção representativa, parecem contraditórios.
A Jurema é um clube para caboclos, uma ordem para os que se vestem de pena (se recobrem de misericórdia, conforme o implícito contexto significante da língua portuguesa, independentemente da consciência dos informantes poder ou não resgatá-lo). A Jurema convida e preside: Se ele é caboclo e se veste de pena, venha ver as forças que tem a Jurema.
Ao vestir-se de pena, a Jurema (também) é alada (elevada) e colorida (luminosa). Note-se o cunho sensorial e imediato das metáforas, imagens para levar ao pé do corpo, sem distinção entre coisas e significância. São quase tácteis e veiculam valores. Oferecem-se literalmente ao "olhar".
Os caboclos, físicos ou metafísicos, acodem performativamente ao chamado para "ver" - implícita alusão à "luminosidade" (alucinose) da Jurema. Ao contemplá-la, Outro sujeito, são capturados pela sua luz, vivenciada como olhar: como é brilhante o seu olhar.
A sua associação a rios é uma constante - Jurema sentada na beira de um rio - e os pontos insistem na temática do "ver": Eu vi a Cabocla Jurema se banhando na cachoeira. Mostra-se nas águas. Revela-se em águas que vêm do alto.
Como essa linguagem não é representativa, apenas ilusoriamente se poderia confundir esse tipo de "altura" com uma localização espacial (vide Corbin, 1971) ou um acidente geográfico: Eu venho das águas claras, eu venho do alto mar. Eu venho de muito longe, do tronco do juremal. A Jurema é grandiosa. Acima de qualquer realismo, a sua raiz sertaneja implanta-se em alto mar. As águas claras, do longínquo alto mar, circulam pelo tronco do juremal.
Além de rios e cachoeiras, literalmente, há mar no juremar: A marola lá do mar, aí vem rolando, e a cabocla Jurema é quem vem chegando. A par da sonoridade, também a cor das matas pode ligar a cabocla ao mar: O seu penacho é verde, é da cor do mar. Longe de qualquer veleidade de representação objetiva, pura significância ao pé do ver.
No caminho da significância, a liquidez da Jurema é múltipla, não se resumindo à seiva e a seus preparados. Tentar explicá-lo apenas por a planta manter-se viçosa no meio da seca é perseverar na linguagem do erro e do acerto representativo. Não há realismo. A moça linda, índia, pode ser sereia: Cabocla da juremeira, sereia em alto mar.
Na mesma linha, a luminosidade marítima pode literalmente consubstanciar-se em estrelas ...: Sou a Cabocla Jurema, sou a Estrela do Mar. A polissemia da expressão navega por todas as combinações de sentidos, do animal de mesmo nome até à estrela que orna a cabeça da mais comum imagem umbandista de Iemanjá.
O brilho estelar em pauta espraia-se pelo firmamento: O seu manto é de estrelas, ó Jurema, sete estrelas "lhe" alumiam, ó Jurema.9 A Jurema reveste-se de luz e reverbera entre "alto" e "mar": No céu tem estrelas, no mar também tem, salve a estrela do céu, salve a Estrela do Mar.
Mais uma vez, goram-se as expectativas de encontrar qualquer laivo de realismo. A estrela não se prende ao firmamento e reside Lá no juremal, onde canta o rouxinol, onde mora a estrela guia, onde tem raiar do sol.
É impossível reduzi-la. Alcança-se em imagens, mas em realidade não se captura. Está além da imaginação: Ela vem de longe, de longe sem imaginar. No capacete três penas, no braço uma cobra coral. Ela é Jurema, cabocla primeira, rainha do meu jacutá.
Posto que é impossível representá-la, há liberdade para imaginá-la em forma humana, o que permite que a pluralidade dos seus sentidos se dirija a todos os sentidos humanos. Configura-se feminina e bela. Enuncia-se mulher, não obstante planta: Que moça linda é a cabocla Jurema. A sua atração é envolvente e (quase) sensorial. Mostra-se humana e sedutora.Assenhoreia-se dos fiéis prendendo o olhar. Chama a atenção. Cativa.
A antropomorfose permite atingir múltiplas facetas do praticante. O encanto pelo espírito pode ser também sensual. Desta forma, o muito estranho, Outro longínquo, mostra-se à medida humana. Os diversos modos como a sua ação possa se sentir vão tender a se configurar em vestes e enfeites de mulher: A Jurema é muito linda, com seu capacete de pena.
Como o significante "pena" é comumente utilizado como metonímia de caboclo, um capacete de penas também significa que a Jurema carrega na sua cabeça muitos índios (as suas "luzes", os seus "falangeiros"), o que faz sentido na organização do ritual, já que a ela é atribuído o papel de aconselhar e orientar "entidades" indígenas que incorporam nos terreiros.
Mas não é apenas na cabeça que a cabocla, linda, se veste de penas. A roupa que revela o seu corpo de mulher tem a mesma consistência plumária e luminosa: Mas como é linda a Cabocla Jurema, com seu saiote de pena. No âmbito dessa linguagem, tão superlativamente significativa para além de abstrações, não é possível separar beleza de moralidade e de sensualidade. A sedução da Jurema encanta todas as esferas da sensibilidade.
O seu conhecimento formula-se em muitos sentidos. Compõe-se de palavras e de luz, de cantos e de imagens. A "ciência" da Jurema é inerentemente bela. Dessa forma, reforça-se o seu poder de atração sobre o humano. Superlativamente atraente, é a própria soberania sobre o belo: É rainha da beleza.
Imagens como "penas" presentificam-na metonimicamente e instam ao "ver", ao imaginar, ao concentrar-se na sua "luminosidade". Tal contato e possessão estabelecem-se (fora da esfera intelectual e proposicional) como uma comoção emocional e estética, inefável, que, na linguagem do culto, é aludida na forma de profusas referências à beleza da Jurema: Eu tive um sonho lá nas matas da Jurema, nunca vi tanta beleza, cidade do juremal.
A Jurema é beleza e consciência atraentes. Interpela por meio de significâncias sinestésico-sensoriais. Luz em forma de planta (o que alude à materialidade do seu potencial alucinógeno), a sua cabeça é comparada ao Sol: Que lindo capacete de pena, que tem a Cabocla Jurema. Ele é tão lindo como a luz do Sol. É interpretada como manifestação vegetal da luminosidade solar: A coroa dela é um girassol.
O Outro é outra planta. A coroa da rainha é um girassol. A sensível alusão à superlativa e unificante luminosidade solar é patente. É sentida como sol em forma de planta, sem nenhuma necessidade de esgotar o sentido de sol numa coleção de significados.
A proliferação das suas fitofanias pode ampliar-se conforme a necessidade ritual e a liberdade poética: Jurema vem e traz as rosas, Jandira é quem traz o jasmim. As duas na umbanda são irmãs, minhas caboclas tenham pena de mim.
Pode igualmente dizer-se "ao lado" de uma outra importante presença do sagrado em forma de planta na cultura religiosa brasileira: Ela é Jurema, Aroeira, ela vem das matas, Aroeira, ela desce o rio, Aroeira, e sua flecha mata, Aroeira.
Associa-se a outras plantas sagradas, escorre no rio, é certeira. A sua polifonia imaginal pode expressar-se numa rica e multifacetada evocação da sua presença. A objetividade representativa dissolve-se em composição alusiva a algo absolutamente insubstantivo.
Inúmeras vezes, de planta específica, alarga-se ao conjunto da mata, floresta, pois, na linguagem dos "encantados", os lugares de encantamento, as suas "moradas", participam do seu ser, e Ela mora na floresta.
Na linguagem do culto, floresta (ou mata, ou macaia) opõe-se à aldeia. E aldeia tanto pode significar a comunidade dos caboclos, o lugar espiritual dessas "entidades", como referir-se à comunidade do terreiro. Portanto, é cabível interpretar floresta como alteridade relativamente ao propriamente humano, apresente-se este física ou metafisicamente ("médium" ou "entidade"). A Jurema é Outro, longínquo e misterioso. É a própria mata virgem - Estrela d’Alva é minha guia, alumeia sem parar (ou corre o mundo sem parar, uma variante). Ilumine a mata virgem, cidade do juremal (ou cidade do ajucá, segundo outra variante) - e a floresta é uma cidade de seres espirituais.
Não há dificuldade em assimilar a mata aos mistérios e desafios do não familiar, não humanizado, até porque a mitologia dos orixás também ritualmente permite essas aproximações. Mas, o culto da Jurema, celebrado com o corpo inteiro, não permite a redução da mata a uma alegoria do desconhecido e da inconsciência: No centro da mata virgem eu plantei raiz. Nasceu flores. O praticante, ao implantar-se no centro da mata virgem (no âmago da Jurema), fazendo-se outro, índio, colhe flores: O perfume da flor da Juremeira se espalha por todo o juremal. A benção dos caboclos de Aruanda, prá salvar filhos de Umbanda, é a mandado de Oxalá.10 Atendendo à ordem divina, o perfume da juremeira se espalha por todo o juremal. É a bênção dos caboclos de Aruanda. Os caboclos que se incorporam, portanto, depreendem-se da flor da juremeira. Acontecem em imagens poéticas que se presentificam sensorialmente e perfumam a consciência. Vêm da mata: Ê ê ê boca da mata, deixa esses caboclos passar, boca da mata.
Todas as cenas performáticas do transe podem apresentar-se antropomorficamente. Os portões da mata são a sua boca. A boca de uma mulher que profere sentidos enunciáveis por caboclos: Quando o caboclo bate a folha da jurema e preto velho traz arruda e guiné, eles vêm trabalhar na lei de umbanda.11
Trabalhar na lei de umbanda, para um caboclo, é bater folha da Jurema. Aprofundar essa estrofe implicaria num mergulho nos significados rituais associados ao uso ritual do vegetal. Limitando-nos ao esclarecimento das ressonâncias antropomórficas de "folha", cumpre dizer que, no âmbito dessa "leitura" presentificante, é importante não esquecer que cultualmente a Jurema é uma "árvore de ciência" e que as suas folhas podem ser lidas como páginas de um livro.
As folhas também podem ser os médiuns, que os caboclos vão apanhando no chão: O vento está soprando na mata, jogando as folhas da Jurema no chão. O vento está soprando, as folhas estão caindo, caboclos vão apanhando, é lá no chão. Assumida como mãe, é da Jurema que se desprendem as vidas humanas, jogadas na terra, mas recolhidas e cuidadas pelos caboclos que, para tanto, dependem de autorização superior: Ele é caboclo em qualquer lugar, ele não apanha a folha da Jurema sem ordem suprema de Pai Oxalá. A par de uma referência ao ser caboclo como obediente a Deus, nesse ponto percebe-se claramente a fusão entre o metafórico e o literal na linguagem do transe, pois as folhas vegetais são efetivamente colhidas segundo prescrições religiosas.
Numa outra versão fica claro que as folhas (também) são os médiuns. A Jurema aparece como origem e os caboclos surgem como mediadores de re-ligação: As folhas da Jurema o vento vai levando, o vento vai levando, e os caboclos vão apanhando. A incorporação é significada como tempestade, sopro (o que permite dar uma imagem dos movimentos convulsivos que habitualmente acompanham a entrada e saída do transe). Os movimentos corporais, os balanços da incorporação, parecem o sacudimento de uma árvore pela ventania. Mais uma vez, não importam os sentidos inscritos na ordem objetiva do mundo, mas o limiar de sentido inscrito na junção entre corpo e imaginação.
Não obstante a total falta de realismo (e talvez por isso mesmo), cenas descritoras da vinda do Outro em direção ao "eu" possuem uma notável eficácia imaginal enquanto fatores indutores do transe.Em vez de concentração e invocação por parte dos cultuantes, é como se o Outro se concentrasse no local e tempo do ritual: Sua flecha caiu serena ó Jurema, dentro deste congá. Essa inversão especular é um traço bastante característico dessa linguagem.
A flecha da Jurema pode ser uma metonímia da sua presença. Como todos os adereços das "entidades", alude a uma parte da funcionalidade do ser Jurema que, mais do que representá-la, permite compreender estético-sensorialmente as ações e interpelações do Outro, personificado em floresta e mulher. "Serve" para defesa e para a caça. Com ela, a "índia" protege e alimenta os seus filhos. Também "caça" os seus fiéis. Mas a sua flecha cai serena. A Jurema "é" paz. Comporta serenidade.2
Como sói acontecer com muitos pontos, este admite variações: Sua flecha caiu certeira, Jurema, dentro desse congá. Nessa estrofe sublinha-se a precisão da Jurema e reitera-se o seu acerto. Performativamente, a invocação inclui um apelo, um desejo de eficiência e a determinação de uma resolução eficaz. Outra variante multiplica o número de flechas: Suas flechas caíram serenas, morena, dentro deste congá.
Em todos os casos, sucede-se uma narrativa incompatível com o achatamento proposicional. Encontra-se, mais do que uma representação falsa de um estado de coisas (preconceito que implicaria em reduzir o discurso do transe à ilusão), um apelo performático a uma alteridade alusiva ao próprio ser e proposta como sujeito enunciante de uma narrativa.
A serenidade que se supõe às flechas que atingem o espaço ritual significa muito mais um apelo a uma incorporação tranqüila - uma vez que a flecha é metonímia da ação que é ser Jurema enquanto toca aos circunstantes - do que propriamente descreve o momento de entrada em transe, freqüentemente quase convulsivo - o que se simboliza e se reconhece em pontos como A Cabocla Jurema quando vem na aldeia faz a mata balançar.
Pontos que, a par de explicitarem o espelhamento antropomórfico da mata no corpo, abrem caminho à integração significativa desses polissêmicos balanços, por vezes veementes, para não dizer "violentos": Olha o tombo da Jurema, no balanço que ela dá.
A Jurema sacode o corpo e balança existências, qual "mãe" que prepara os filhos para a vida: Nas matas que ela domina, não deixa os filhos tombar. Aqueles que a obedecem aprendem a não cair. Permanecem atentos. Concentrados: No centro da mata virgem, uma linda cabocla eu vi. Com seu saiote de penas, é a Jurema filha de Tupi.
A "índia" filia-se ao ancestral oprimido. Reabilita-o e dá-lhe feição metafísica. Institui-o como antepassado. A letra mostra-a como forma de reconhecimento e admissão do Outro aborígene, bem como de filiação a Outro ameríndio.
O transe é uma forma de aproximação ao distante e de encontro com o estranho familiar: Os portões da mata eu já mandei abrir. Quem tem sangue de caboclo, está na hora de sair. Como cidade, a mata tem portões. A saída dos caboclos, a abertura dos portões, significa a permissão para a entrada na consciência dos médiuns (ou dito de outro modo, a autorização para a alteração da sua consciência). É preciso ter sangue de caboclo, ser seu "filho".
No final de uma gira, na hora da desincorporação, o eu retoma do outro o seu lugar, a consciência volta ao normal: Caboclo vai embora, prá cidade da Jurema. Os caboclos retornam para o "lugar" de onde vieram e esse pode ser um momento de reafirmar a ambigüidade entre "eu" e "outro", que se tem evidenciado nuclear no processo do transe - Vou prá Jurema, quem vai embora sou eu - e que é típica de pontos de incorporação.
Eu venho de muito longe, do tronco do juremal. Quem vem? Um caboclo ou "eu"? Outro, ou o sujeito "dissociado"?
A lonjura do tronco igualmente ecoa memórias sociais inconscientes vinculadas à vastidão de raízes indígenas, donde brotam e onde se implicam os ancestrais "falangeiros da Jurema". Afirma-se uma filiação a um tronco genealógico, presente e atual, uma identificação que também é uma adoção pelo Outro, bem como um compromisso em escutar as raízes: Ele jurou e tornou a jurar, de ouvir os conselhos que a Jurema lhe dá. Não apenas ontem, mas sempre: Ele jurou e sempre jurará, pelos conselhos que a Jurema vai lhe dar.
Consciência alterada, abissal, a Jurema é conselheira. Ela fornece instruções aos que com ela operam. Para isso a comungam nos rituais mais próximos das raízes, ou lhe prestam atenção, mesmo sem o recurso à bebida. Ela transgride os limites das várias imagens que a tentam conter. Na verdade é ela que, conforme o conceito que dela se tenha, revela quem são os que a "representam": bioquímicos, índios, catimbozeiros, missionários, botânicos, umbandistas, sociólogos, psiquiatras etc.
A sua docilidade às variadas formas de interpretá-la evidencia que escorre por entre conceituações e escapa às tentativas de objetivação. Acontece como Outro enunciante que, ao depor-se, situa os seus interlocutores. Narra-se de maneira complexa e furtiva a tentativas de definição. Renunciando-se ao viés psicologista da Psicanálise, a Jurema pode e deve ser tratada como Outro interpelante.
Dar ouvidos ao Outro não significa afiançá-lo existente, nem tomar partido contrário à sua existência. Aliás, tranqüilamente não realistas, as suas enunciações mostram-na despreocupada quanto a decisões metafísicas sobre o estatuto objetivo da sua realidade.
Presentifica-se poeticamente, certeira e serenamente, conforme razões não domesticáveis cognitivamente.
O simbolismo da planta deriva dos galhos vegetais para significados na língua. A Jurema, árvore e mulher, promove um estranhamento do humano e uma humanizante natureza. As suas folhas, flores, troncos e raízes deslizam polissemicamente, irrealizam-se, e culminam em processos no âmbito dos quais a planta pode ser signo de um símbolo e o símbolo presentificar verdadeiramente a planta. Não faz sentido a dicotomia entre coisa e signo.

Autor: José Francisco Miguel Henriques Bairrão - Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP
Texto recebido por e-mail, enviado por taranissp@hotmail.com - achei muito interessante - e se você gosta de ler pode fazê-lo na integra, clicando aqui , pois a parte aqui exposta e uma pequena parte do mesmo, conforme o recebemos.