segunda-feira, 10 de maio de 2010

13.10.2005
Êxtase, Ritos Sagrados: a nova série do Fantástico
Domingo que vem começa uma nova série aqui no Fantástico! Êxtase - Ritos Sagrados!
Nossos repórteres percorreram templos, terreiros, igrejas em todo o Brasil para mostrar as práticas religiosas criadas para levar o homem a um contato com a divindade, o mundo espiritual, o além!
Vai ser uma viagem fantástica ao território de tudo o que é sagrado: o mundo das crenças, da fé, do transe místico, do assombro, do arrebatamento, do sobrenatural!
Bahia. No meio do mato, num terreiro sem luz elétrica, a invocação de Ogum, o orixá que abre todos os caminhos!
São Paulo. Católicos carismáticos invocam o Espírito Santo! Impressionante! Os carismáticos, arrebatados pela emoção, rezam em línguas desconhecidas.
Brasília, exclusivo! Pela primeira vez uma equipe de telejornalismo é autorizada a filmar os ritos espíritas dentro do templo sagrado do Vale do Amanhecer. Dois mil médiuns se reúnem todos os dias para seguir a doutrina criada por Tia Neiva – 20 anos depois da morte da célebre vidente brasileira.
Amazônia. Nossos repórteres apresentam as três religiões brasileiras que usam ayahuasca - um chá que provoca visões e, segundo os adeptos, transporta o homem ao mundo dos espíritos.
Você vai viajar ao Céu do Mapiá, a Nova Jerusalém que os seguidores do Santo Daime criaram no meio da floresta amazônica. Vai assistir a uma sessão da União do Vegetal - nunca mostrada antes na TV. E vai conhecer os marinheiros do mar sagrado - os fiéis de uma religião chamada "A Barquinha".
Você vai ingressar nos mistérios dos rituais afro-brasileiros de incorporação. No terreiro, dançam os orixás, os caboclos e os encantados! Dona Mariana, uma entidade do tambor de mina maranhense. O caboclo boiadeiro. Xangô, o orixá da justiça!
Entrevistas com os médiuns que acreditam receber em seu corpo os habitantes do mundo sagrado. O que a ciência tem a dizer sobre isso?
Sul do Brasil. A força ritual do budismo tibetano. A lama do mosteiro entra em êxtase ao executar os passos da dança sagrada. Os devotos, dentro do templo, buscam a iluminação espiritual.
São Paulo. O sheik de uma ordem súfi revela os mistérios dos dervixes rodopiantes - a busca do sagrado na religião do islã. Eles giram para despertar a consciência divina.
Estréia domingo que vem! Êxtase, Ritos Sagrados!


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16.10.2005
Vale do Amanhecer
Começa no Fantástico uma série de reportagens especiais sobre crença, religião, fé. Vamos ingressar juntos no território de tudo o que se chama de sagrado. Um território mágico, sobrenatural, onde a realidade comum se transfigura e o homem ergue os olhos em direção às paisagens de outro mundo: o mundo do espírito, do eterno, do infinito.
O mestre da língua portuguesa Antônio Houaiss ensina que êxtase é o estado de quem se encontra transportado para fora de si e do mundo sensível.
Êxtase pode ser uma perturbação mental provocada pelo medo, pelo terror.
Mas o êxtase também pode ser um estado de exaltação mística. De admiração. Encanto. Espanto. Assombro. Arrebatamento. Os devotos buscam o êxtase em templos, terreiros, igrejas...
Você vai conhecer a força de um Brasil iluminado pela fé! Vai seguir os caminhos que o devoto percorre na busca de um contato direto com o divino.
Nas próximas semanas, seremos acompanhados nesses caminhos por especialistas como o neuropsiquiatra e professor da Unicamp Paulo Dalgalarrondo, que estuda as relações entre o cérebro e as práticas espirituais. Reginaldo Prandi, professor da USP, especialista em religiões afro-brasileiras e o psicanalista Roberto Gambini.
“Você se tornando membro de uma prática religiosa, verá o sagrado diante dos teus olhos”, diz Gambini.
Primeiro destino desta viagem ao sagrado: o Vale do Amanhecer, em Brasília, um lugar que mostra o quanto pode ser eclética a fé do brasileiro. E onde o êxtase ocorre com a prática da mediunidade: a crença de que os homens podem se comunicar com seres invisíveis.
Esta é a primeira vez que uma equipe de tevê é autorizada a filmar os ritos espiritualistas que ocorrem dentro do templo sagrado do Vale do Amanhecer, um lugar que chega a reunir num único dia dois mil médiuns.
Na doutrina espírita, médium é toda pessoa que sente, em algum grau, a presença dos espíritos.
Neste lugar, logo na entrada do templo, os médiuns acreditam estar em contato com seres espirituais muito evoluídos, mentores invisíveis que canalizam suas forças através dos médiuns em benefício de alguém que está no meio da roda.
No centro do templo, está a mesa evangélica. Segundo a doutrina do Vale do Amanhecer, lá, espíritos sofredores recebem auxílio dos médiuns.
“O espírito sofredor é essencialmente aquele espírito desencarnado, seja recém desencarnado ou desencarnado há mais tempo, que por suas dores, angústias, mágoas e realizações, ou pela pura incompreensão, não seguiu um destino melhor espiritualmente“, diz o mestre Jarbas Guimarães.
Esses sofredores, que seriam pessoas que morreram, mas cujos espíritos permanecem presos à terra, entram no corpo dos médiuns que estão sentados. Os médiuns que estão em pé auxiliam transmitindo energias positivas.
Algo semelhante ocorre neste setor do templo sagrado do Vale do Amanhecer. Este é o chamado "trabalho de tronos". A crença é que os pretos velhos e as pretas velhas, ex-escravos que possuem conhecimento espiritual, atuam incorporados nos médiuns, orientando e consolando os aflitos e libertando essas pessoas de forças negativas.
O médium que recebe os espíritos, chamado "apará", entra em êxtase espiritual.
“A partir do momento em que a força tomou o seu sistema, ele sente uma outra natureza dentro dele. Ele sente uma natureza muito mais sublimada, muito mais paciente, muito mais sábia. Ele sente”, diz mestre Jarbas.
Na outra extremidade do templo, está a imagem do grande mentor espiritual do Vale do Amanhecer: Pai Seta Branca, considerado um espírito de luz, que em outras encarnações teria sido São Francisco de Assis e também um grande líder da nação tupinambá.
Pai Seta Branca, que segundo esta doutrina trabalha em sintonia com o princípio da caridade cristã, seria o líder de uma formidável variedade de entidades espirituais, chamada Corrente Indiana do Espaço. É uma corrente eclética, que reúne espíritos de negros, índios, caboclos, ciganos, magos, sereias, orientais.
Estas imagens seriam recebidas dos planos espirituais por este artista médium, Joaquim Vilela. Ele aponta outro grupo de mentores da corrente do Pai Seta Branca: entidades vindas do espaço em veículos chamados "estufas".
Fora do templo, ocorre o trabalho de estrela. A finalidade, segundo esta doutrina, é atrair espíritos muito negativos e ajudá-los a seguir em direção à luz. A médium Natália de Queiroz trabalha com uma energia atribuída a Iemanjá, a rainha das águas na tradição afro-brasileira.
“Eu sinto só aquela vibração boa, sinto aquela vibração boa como se estivesse nas águas, mesmo”, diz Natália.
Os homens, chamados jaguares, usam calças marrons para evocar as roupas de Francisco de Assis.
As mulheres são ninfas, cada roupa se refere a uma corrente de seres espirituais.
Este lugar e esta doutrina nasceram dos olhos de Tia Neiva, líder espiritual do Vale do Amanhecer, tida como clarividente pelos seguidores desta linha religiosa.
“Eu me transporto e vejo coisas que Jesus me concede que eu veja”, disse Tia Neiva numa entrevista.
Tia Neiva morreu em novembro de 1985, há vinte anos. Nas décadas de 70 e 80, milhares de pessoas, inclusive artistas e políticos, vinham buscar a orientação dessa sergipana que teve uma vida muito dura.
“Ela ficou viúva aos 22 anos e ela ficou sozinha, com a filha. Então ela foi e tirou a carteira de habilitação. Foi a primeira motorista profissional do Brasil”, diz mestre Raul Zelaya, filho de Tia Neiva.
O filho Raul diz que era neste quarto que Tia Neiva entrava em êxtase mediúnico.
“Ela passou a ter esse fenômeno de ver espírito. O olhar dela era como se tivesse olhando o infinito. Como se estivesse distante”, conta Raul.
A missão de Tia Neiva cresceu. Compare o Vale do Amanhecer na época em que ela morreu e agora: em torno do vale, cresceu uma cidade de 30 mil pessoas.
Hoje, o sucessor de Tia Neiva é o brasileiro nascido no Líbano Michel Hanna, que recebeu o título de trino sumanã, o maior na hierarquia da doutrina.
Ele foi um dos que ajudaram a criadora do Vale do Amanhecer a expandir esta missão, que hoje se espalhou por outros templos no Brasil e no exterior. É assim que ele define o êxtase da prática mediúnica:
“A mediunidade é uma voz direta do céu. Através dela, dessa comunicação, a gente caminha”, diz Michel Hanna.
Domingo que vem você vai ver católicos em êxtase! Os seguidores da renovação carismática invocam o espírito santo e rezam em línguas desconhecidas.


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23.10.2005
A voz do Espírito Santo
Você já deve ter visto as cenas de fervor religioso que ocorrem em igrejas católicas e templos evangélicos. Mas as cenas que você vai ver são raras: evangélicos e católicos rezam em línguas estranhas! Que língua é essa, que não faz sentido, que não tem significado? Que parece mera repetição de sílabas?
Aos olhos da fé, essa estranha oração tem um sentido e tem uma história, que vem de dois mil anos atrás. É o que você vai ver neste novo episódio da série "Êxtase, Ritos Sagrados".
São Paulo, igreja de Nossa Senhora do Brasil. As orações diante do altar-mor preparam os devotos para o que vem a seguir: os católicos carismáticos acreditam que nestas celebrações recebem os dons do espírito santo. Este é o que eles chamam de o dom de orar em línguas estranhas.
“Esse tipo de exaltação na fala permite a você ficar até horas e horas louvando e exaltando a Deus. É uma linguagem que não tem tradução, não tem interpretação. Você não pensa, não articula, não se trata de uma linguagem identificável, em termos de linguística ela não tem estrutura que possa analisar e traduzir. Isso é a oração em línguas”, explica Reinaldo Beserra dos Reis, membro do Comitê Internacional da Renovação Carismática.
Sorocaba, São Paulo. Em outra celebração carismática, os devotos entram em êxtase.
Ainda em São Paulo, um templo evangélico: a Igreja Assembléia de Deus Betésda. É uma religião pentecostal, protestante e não católica - mas também ali os crentes oram em línguas estranhas.
“Quando ele está falando em línguas estranhas, ele está falando com deus numa língua que para ele é mistério. Ela é um fenômeno de transbordamento, nós dizemos que é ultrapassar a barreira da linguagem”, observa o pastor Ricardo Gondim, presidente da Assembléia de Deus Betesda.

“Eu sinto que é a manifestação do poder de Deus. Que ali Deus realmente confirma a sua presença”, acredita Id Feres, aposentado.
Mas qual é o fundamento desta prática religiosa? Conta a bíblia que antes de subir ao céu Jesus Cristo prometeu enviar a seus apóstolos o Espírito Santo. Na celebração de Pentecostes, 50 dias depois da Páscoa judaica, em Jerusalém, o Espírito Santo desceu sobre os discípulos de cristo, inclusive a Virgem Maria, na forma de línguas de fogo. Então ocorreu o fenômeno das línguas: os apóstolos falavam em sua própria língua, provavelmente o aramaico. E ainda assim, muitas testemunhas que não conheciam o aramaico porque eram de outras regiões entendiam o que os apóstolos diziam.
“No Pentecostes houve aquela efusão grande do Espírito Santo. É interessante que o primeiro fenômeno é que o que os apóstolos falavam, todos entendiam. Depois houve muitas vezes esse fenômeno de glossolalia, de falar em línguas diferentes”, revela Dom Alberto Taveira, arcebispo de Palmas/TO, e diretor espiritual da Renovação Carismática.
“Aquele fenômeno que se deu no dia de Pentecostes não ficou restrito ao dia de Pentecostes, essa promessa iria se repetir em outras ocasiões”, assegura o pastor Gondim.
“Quando você está muito feliz com algo que acontece que você começa a cantarolar muito mais usando os sons do que as palavras”, lembra Dom Alberto Taveira.
O pastor Ricardo Gondim cita uma frase do Apóstolo Paulo: “as línguas estranhas são os gemidos inexprimíveis do espírito que em mim ora ao pai”.
Um pastor evangélico americano, negro, quase cego, inaugurou a era moderna do movimento pentecostal. Seu nome: William Seymour. No início do Século 20, este homem promovia cultos barulhentos, com muito canto, muita dança, gritos, línguas estranhas - êxtase espiritual dentro de um templo numa rua que se tornaria célebre: a Rua Azuza, em Los Angeles.
Em abril de 1906, repórteres do "Los Angeles Daily Times" assistiram às celebrações do pastor Seymour e puseram na primeira página do jornal: “Espantosa babel de línguas!”, “Nova seita de fanáticos à solta!”, “Cenas impressionantes na noite da Rua Azuza!”.
Foi assim, há quase cem anos, que o movimento pentecostal voltou: primeiro, nas igrejas evangélicas. Mais recentemente, nos anos 60, também na Igreja Católica.
“No momento em que nós estamos orando em línguas, é o próprio espírito que vem e nos conduz a esse momento de oração“, acha Raquel Bergamin, estudante.
“É uma experiência com Deus“, ressalta Lílian dos Santos, balconista.
“Toda essa experiência que vivemos tem como fruto e consequência uma paz interior muito grande”, lembra Marcos Volcan, líder da Renovação Carismática.
“As pessoas da minha família dizem ‘você enlouqueceu, isso aí é coisa da sua cabeça, você criou isso’, mas eu tinha dentro de mim uma consciência muito clara. Algo de extraordinário estava acontecendo comigo”, conta Ironi Spuldaro, pregador da Renovação Carismática.
“Eu estou louvando a Deus, na verdade, com o meu falar em línguas”, explica Sílvia Bocalini, administradora de imóveis.
“O êxtase, o que nós entendemos como êxtase, é esse momento em que minhas emoções ficam tocadas pela presença e pelo contato com o sobrenatural. E com um Deus que acreditamos que é vivo e verdadeiro”, conclui Gondim, presidente da Assembléia de Deus Betesda.
“O que é certo é que nós estamos num ambiente de fé pedindo por isso e Deus realiza, e Deus é glorificado”, finaliza Dom Alberto Taveira.
Domingo que vem! Bahia! No meio do mato, num terreiro sem luz elétrica, a invocação de Ogum, o orixá guerreiro que abre todos os caminhos! Você vai ver o êxtase na religião afro-brasileira!


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30.10.2005
Ogum, o guerreiro
Você vai entrar agora num território sagrado. Pela primeira vez, umas das casas de candomblé mais tradicionais da Bahia permitiu que uma equipe de TV filmasse o momento exato em que um deus africano – Ogum, o guerreiro que abre todos os caminhos – se manifesta no meio do terreiro.
Na crença dos praticantes dessa religião vinda da África, os deuses, chamados de orixás, podem ocupar o corpo do sacerdote. Mãe Florzinha é uma ilustre descendente de uma linhagem nascida em Angola. Ela incorpora Ogum desde os 13 anos.
“Quem está manifestada é como se estivesse dormindo: não vê nada, não ouve nada”, conta Mãe Florzinha. Na escuridão dos sentidos, o sagrado, o mágico, o sobrenatural é recebido com festa e com muito respeito no meio do terreiro.
Há 130 anos, o Ilê Axé Orisanalá d’Omin, Terreiro São Bento, celebra os orixás no coração da mata em Itaparica, na Bahia. No local está o chamado assentamento de Ogum. O espaço, acredita-se, contém a força mágica do orixá.
Um filho-de-santo prepara o mariô, a palha tirada da árvore do dendê que simboliza a roupa de Ogum. No local se convive como numa grande família.
A comida que mais tarde será oferecida numa festa ao orixá Ogum já está sendo preparada por dona Celeste Reis de Alcântara, de 84 anos. “Tudo do orixá é preparado no fogão à lenha. Só quem pega na comida dele sou eu”, diz ela.
O babalaxé, homem que zela pela força espiritual da casa, cobriu de folhas o chão do barracão. “Essas folhas são a ligação entre orixá e a terra, para que ele não pise na terra pura”, explica Dílson Arruda.
Cai a noite. Uma oração celebra a chegada da luz, que nesse terreiro, vem do lampião. A comida é levada como oferenda ao assentamento de Ogum. No barracão, o toque dos atabaques anuncia o início da cerimônia sagrada.
Durante uma hora ocorrem danças e reverências. De repente, o corpo de Mãe Florzinha estremece com força. É o sinal, compreendido por todos, de que ela acaba de ser incorporada pelo orixá. Então ela é vestida com um pano azul, a cor do orixá.
Logo depois, Mãe Florzinha sai do barracão. Ela voltará com as roupas de Ogum. Enquanto isso, outras divindades do candomblé começam também a se manifestar no espaço sagrado do terreiro, como Iansã, a orixá das tempestades, dos ventos, dos raios. Uma jovem recebe Xangô, o orixá da justiça. Ela cumprimenta a avó, o pai e a mãe, que se chama Alda e é também a mãe-de-santo que comanda o terreiro.
Ogum está de volta. Agora, com sua espada. No peito, o escudo de guerreiro. E na cabeça, o capacete. A mãe-de-santo faz uma representação simbólica: Ogum se veste para a guerra. O rito relembra o mito do orixá guerreiro, que abre os caminhos com sua espada e com ela distribui entre todos o chamado "axé", a força espiritual do orixá. Ogum vai embora.
Há 60 anos, um fotógrafo francês chamado Pierre Verger desembarcou na Bahia e foi seduzido pelo candomblé. Verger fez retratos belíssimos do culto aos orixás. Foi à África, pesquisou as lendas sobre esses deuses poderosos. A respeito de Ogum, que teria sido um rei africano, Verger botou no papel a tradição oral, no fim da vida, Ogum baixou sua espada e desapareceu sob a terra. Ogum tornara-se um orixá.
“Quem está manifestada é como se estivesse dormindo, ou até mais: é como se tivesse tomado uma anestesia geral – não vê nada, não ouve nada. Está andando, mas não está vendo, não está ouvindo nem está sentindo nada”, conta Mãe Florzinha.
Conta a lenda que Ogum, o orixá dos metais, era um hábil ferreiro, assim como Zé Diabo. Ele é um artista que, numa oficina modesta na Ladeira da Conceição, em Salvador, forja as ferramentas de santos – objetos sagrados que serão usados em assentamentos. “Com o escudo, ele se defendeu na guerra. Tem as duas espadas da briga e as ferramentas, porque sem elas o homem não trabalha. O ferro de Ogum é usado para chamá-lo para vir para a terra”, explica ele. “Temos que ter fé em Deus em primeiro lugar e em Ogum. Tudo o que eu quero, peço a esse orixá e ele me socorre”.
“Para mim, Ogum é meu pai, meu irmão, meu filho, meu professor, meu amigo, meu esposo. Ogum para mim é tudo”, ressalta Mãe Florzinha.


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07.11.2005
Oração e meditação
Uma religião nascida seis séculos antes de Cristo. Neste exato momento, segundo a crença do budismo tibetano, você está recebendo milhões de bênçãos. Basta sentir o vento, basta olhar para os monumentos sagrados. Diz a filosofia budista que contemplar imagens sagradas é o suficiente para que o coração se encha de luz.
Na cidade de Três Coroas, no Rio Grande do Sul, fica o Templo da Terra Pura, onde se pratica uma disciplina que busca levar o homem a contemplar aquela que seria a sua autêntica natureza, a natureza iluminada, sem aflições, repleta de amor e compaixão.
Uma brasileira nascida no Amapá vai executar a dança sagrada dos lamas, os antigos mestres espirituais da Índia. Ela própria é uma lama, uma líder no budismo tibetano praticado em terras gaúchas.
A dança de lama Sherab é uma forma de meditação e, segundo esta filosofia, leva benefícios espirituais também a quem a assiste. Há equilíbrio, força e delicadeza. “Você pode entrar, em alguns momentos da dança, em um estado meditativo. Às vezes você pode sentir o seu corpo mais leve, e não sente tanto o peso da roupa. Você pode entrar em um estado de paz mental muito grande, de uma calma mental muito grande”, destaca lama Sherab.
Um conjunto de prédios forma o Kadro Ling, um espaço sagrado, um centro de práticas espirituais ligado a uma das três grandes linhas do budismo: o budismo vajrayana, também chamado de budismo tibetano, que é seguido pelo Dalai Lama.
Buda, um ser iluminado, viveu no século 6 antes de Cristo e, segundo a tradição, teria deixado 84 mil diferentes práticas para atender a maior variedade possível de seres humanos.
“Na cerimônia da água, na oferenda da água, nós praticamos a generosidade ao oferecer algo, nós praticamos a paciência, porque são muitas tigelas de oferendas. Também é praticada a disciplina, que é fazer da maneira correta”, explica Lama Sherab.
Em outra cerimônia é feita uma oferenda de luz, quando também se exige delicadeza e paciência para acender centenas de lamparinas. Também existe a circum-ambulação: andar, em sentido horário, em torno de monumentos sagrados.

Os devotos também circulam em torno de gigantescas rodas de oração. Dentro delas, foram postos milhões de papeizinhos com mantras impressos. As rodas, para os budistas, espalham bênçãos em todas as direções.
Ao recitar mantras ao ar livre, próximo a várias bandeirinhas com orações penduradas, o lama estaria recebendo e também espalhando com o vento uma infinidade de bênçãos, em benefício de toda a humanidade.
“No templo sagrado, no centro do altar, no topo, existe uma imagem de Buda Shakyamuni. Abaixo dele está uma imagem de Tara, que é referida como a Buda feminina”, explica lama Sherab.
Em língua sânscrita, Buda significa “iluminado”. As paredes do templo do sul do Brasil contam a história deste príncipe da Índia que abandonou a riqueza para buscar a verdade, e se tornou um dos maiores líderes espirituais da história.
Quando estava grávida, a mãe do príncipe Sidarta sonhou com um elefante branco. Isso indicava que ela conceberia alguém muito especial. Sidarta foi educado como um nobre, até que um dia saiu do palácio e conheceu o sofrimento causado pela doença, pela velhice, pela morte.
Sidarta abandonou a riqueza, virou eremita e indagou como poderia o homem libertar-se do sofrimento. Um dia, Sidarta se iluminou e começou a ensinar os seguintes princípios aos discípulos: “Estamos presos em um ciclo de existências. Então nós morremos e renascemos múltiplas vezes, devido a um estado que, no budismo, chamamos de ‘ignorância’, que significa não reconhecer o que é a nossa verdadeira natureza, ou verdadeira essência. O que nos impede de ver essa natureza são o que nós chamamos de ‘venenos da mente’, ou ‘paixões’: orgulho, inveja, ciúme, desejo, apego, aversão, ódio, raiva”, explica lama Sherab.
O lugar onde a vida é tratada com tanta delicadeza, onde até as formigas são protegidas, nasceu do sonho de um lama tibetano: Chagdud Tulku Rinpoche, que fugiu do Tibet com a chegada dos comunistas, em 1959. Foi para o Nepal, depois para a Europa e para os Estados Unidos. Chegou ao Sul do Brasil há dez anos, quando começou a construir o centro budista.
A dirigente maior do Khadro Ling, a americana Chagdud Khadro, conheceu Rinpoche no Nepal e se apaixonou por aquele homem sábio, morto em 2002. “Entrar na presença de Rinpoche, era como mergulhar em um oceano de compaixão”, conta Chagdud Khadro.
Na madrugada, toca o sino que chama para a prática conhecida como puja. São recitações de mantras suaves alternadas com fortes passagens musicais.
“Todas as práticas que fazemos, por mais exóticas que pareçam, têm o objetivo de purificar a mente, de acumular mérito, virtude, e ainda de nos levar ao reconhecimento da nossa autêntica natureza interior”, explica Chagdud Khadro.


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13.11.2005
O que a ciência tem a dizer sobre a fé?
O que vem à sua mente quando ouve a palavra islã? Meca. A cidade santa dos muçulmanos, na Arábia Saudita, berço do islã, onde está a caaba – uma construção em forma de cubo que teria sido erguida pelo patriarca Abraão. Os peregrinos dão sete voltas em torno da caaba.
Agora você vai conhecer outra prática sagrada no islã: a dança dos dervixes. Eles rodopiam ao redor de um eixo que passa pelo coração para chegar mais perto de Alá, a divindade, Deus. Esta é uma dança de amor divino.
Bairro da Penha, São Paulo, sábado à noite. Esta prática de oração se chama "zikr" , que em árabe significa lembrança ou recordação de Deus.
O que se busca com estas orações é uma aproximação amorosa com o criador, Alá. Para estes homens, conhecidos como súfis, a experiência de Deus ocorre durante um doce arrebatamento.
“É uma prática espiritual que uma das possibilidades é que a pessoa entrando em harmonia com seu ser interior consiga se harmonizar com a realidade divina também, experimentar bênçãos de Alá“, explica Sheikh Ragip.
O sufismo é uma corrente mística dentro do islamismo; seus princípios teriam sido transmitidos pelo profeta Maomé, que fundou a religião islâmica no século 7.
Outra prática de oração é o giro dervixe.
“O dervixe está sempre girando. Nesse processo o indivíduo acaba entrando em sintonia com uma realidade maior, a manifestação da vontade de Alá”, explica Sheikh Ragip.
Diz a tradição que foi um poeta quem criou a dança sagrada dos súfis, Rumi. Ele nasceu na Pérsia, no século 13 depois de Cristo, era descendente de uma importante família de teólogos do islã. Rumi, arrebatado em êxtase místico, buscou a união com a divindade da mesma forma que o amante busca a amada. Rumi escreveu:
"Que o amante seja desgraçado, louco, distraído!
Sempre haverá alguém que esteja sóbrio
Para se preocupar com as coisas que vão de mal a pior.
Deixe o amante ser.
Apenas, ser"
A mão direita voltada para o alto recebe as bênçãos de Alá, a mão esquerda, para baixo, distribui essas bênçãos.
Rodopios, cantos, orações - o homem criou técnicas para buscar uma experiência direta de Deus. E o que diz a ciência sobre isso? Em primeiro lugar, que não cabe a ela, ciência, atestar se Deus existe ou não. Isso é uma questão de fé. Mas algumas pesquisas recentes lançam luz sobre coisas interessantes. Por exemplo: o que ocorre no cérebro durante a experiência religiosa?
“Quando as pessoas estão tendo experiências religiosas intensas há uma modificação no funcionamento do cérebro naquele momento”, explica o neuropsiquiatra da Unicamp Paulo Dalgalarrondo.
Dalgalarrondo explica que as modificações do estado cerebral dependem do tipo de prática religiosa: “Um estudo feito nos Estados Unidos com monges budistas tibetanos mostrou que durante a meditação havia uma diminuição do metabolismo de uma região do cérebro, a região parietal, que está muito envolvida com a consciência do corpo, a consciência da relação eu-mundo”.
Ou seja, a atividade cerebral reflete a ação de quem medita: romper os laços com o mundo dos objetos sensíveis e assim expandir o estado de consciência.
Um outro estudo feito na Europa revelou: os cérebros de um grupo de cristãos foram especialmente ativados pela leitura de um salmo bíblico, o salmo 23, aquele que diz: "O senhor é meu pastor, nada me faltará". E mais adiante: "Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte,
nada temerei, pois Deus está comigo”.
O estudo foi feito no Instituto de Neurologia da Universidade de Dusseldorf, na Alemanha, em 2001. Um dos coordenadores da pesquisa, o professor Rüdiger Seitz é protestante, muito religioso, por isso, como neurocientista, se perguntava: será que o cérebro humano tem alguma área específica relacionada à fé das pessoas?
Durante um ano, 12 pessoas – seis religiosos e seis não praticantes de qualquer religião – foram submetidas a testes. Quando eram lidos trechos da Bíblia, principalmente o salmo 23, partes dos cérebros das pessoas ligadas à religião eram ativadas, o que é provado pelas tomografias. As partes do cérebro ativadas pela experiência religiosa são as mesmas ligadas às emoções e ao poder de memorização.
Raul Marino Júnior, professor de neurocirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, autor do livro "A religião do cérebro", é um defensor da chamada "neuroteologia": o cérebro, afirma, pode funcionar como uma antena e captar o divino.
“Nesse momento, estamos sendo atravessados por milhares de raios cósmicos, por milhares de neutrinos, de fótons, milhares de corpúsculos e de ondas vindas do universo inteiro”, diz Marino.
O doutor Marino defende que também existem ondas relacionadas ao divino e que essas ondas podem ser captadas pelo devoto durante sua prática religiosa. As "antenas" seriam os lobos temporais.
“Os lobos temporais são chamados na neuroteologia de sexto sentido. É esse lobo, principalmente do lado direito, que permite conhecer o divino, sem ajuda externa”, afirma Marino.
“A experiência religiosa, a religiosidade, é um fenômeno humano extremamente complexo, rico, e que não se reduz a ativação de uma pequena área cerebral ou a um padrão neuronal. Mas também tem aspectos culturais, que também são muito importantes, aspectos históricos. Nesse sentido, não podemos reduzir a experiência religiosa a um centro cerebral”, argumenta Paulo Dalgalarrondo.
Domingo que vem: a incorporação de espíritos! Devotos entram em êxtase supostamente possuídos por habitantes do mundo sagrado. E a alegria do caboclo boiadeiro quando chega no terreiro.


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20.11.2005
O mistério da incorporação de espíritos
Você vai conhecer agora um sujeito simpático, muito animado, que gosta de festa e de mulheres. Seu nome? João Chapéu de Couro, também conhecido como Caboclo Boiadeiro. Seja muito bem vindo a este terreiro. Começa agora mais um episódio de Êxtase, Ritos Sagrados!
Este é um terreiro de candomblé em Sobradinho, perto de Brasília, e o homem que dança é um babalorixá - ou pai-de-santo.
Ele se chama Américo, é conhecido como Pai Lilico, mas neste momento, segundo a crença, Pai Lilico não está: quem comanda este corpo é uma entidade espiritual, um caboclo que faz os gestos de quem segura as rédeas de um cavalo para tocar a boiada.
Nos cultos afro-brasileiros, acredita-se que os espíritos podem possuir temporariamente o corpo dos médiuns - chama-se a isso de "incorporação".
Você já deve ter ouvido falar, por exemplo, dos pretos velhos, que são entidades ligadas à umbanda. Os pretos velhos teriam sido escravos que sofreram, morreram e agora voltam para praticar a caridade.
Pai Mutalê, sacerdote de um terreiro no subúrbio do Rio de Janeiro, acaba de incorporar um preto velho, chamado Pai Cipriano do Cruzeiro das Almas.
Repare nas pernas fracas, o tronco curvado, as marcas que a escravidão imprimiu num homem velho. Essa entidade é considerada sábia, dá conselhos a quem a procura.
Outras entidades chegam ao templo: Exu, Pomba-Gira... Eles seriam mensageiros entre o mundo dos homens e o dos orixás.
Um terreiro em Guararema, São Paulo, é do orixá Xangô, o rei da justiça, e quem comanda é uma mulher: a ialorixá Sandra Epega.
Na língua iorubá, ela celebra os preceitos para invocar a presença de Xangô. O momento em que o orixá ocupa o corpo da médium.
Xangô sai para se vestir com as roupas próprias do orixá. Quando ele volta, acolhe os filhos espirituais, dá conselhos, distribui búzios de presente. Depois, Xangô fala: “Ninguém deve duvidar da força de um orixá, como ninguém deve duvidar da força de nenhum nome que o ser humano dá par Deus”.
Depois da incorporação, a médium parece exausta. “Eu não sei pra onde vai meu espírito. Ele vai para trás. A impressão que eu tenho que é que estou parada e o mundo passando”, diz Sandra.
Diadema, Grande São Paulo. Este é um terreiro de tambor-de-mina, uma linha de candomblé nascida no Maranhão. Pai Francelino incorpora um ser encantado, no caso uma mulher, Dona Mariana.
O encantado é um ser diferente do orixá, porque viveu na Terra mas não morreu - simplesmente, encantou-se.
Diz o mito que Dona Mariana, ou Cabocla Mariana, foi uma princesa da Turquia que fugiu de navio na época das cruzadas.
“O que se sabe é que esse navio teria sido levado pelas correntezas, teria se desviado, naufragado na costa maranhense e ali ela teria se encantado. As cantigas e as danças te levam a outro mundo, outra dimensão. O transe é como se você, de repente, caísse dentro de um poço e quando você volta não é mais você”, conta Pai Francelino.
“É como se você desse um salto no escuro, é um momento de escuridão, de anulação da sua consciência. Naquele momento, o que você é não vale nada. Aquele é o momento do orixá, ele é que vai dançar, que vai se apresentar”, compara Reginaldi Prandi, especialista em religiões afro-brasileiras, da USP.
“Os êxtases religiosos, os estados de transe, são fenômenos que se desenvolvem em práticas religiosas grupais. Há um aprendizado para se alcançar estes estados, há um treinamento que as pessoas mais experientes passam para as pessoas que estão se iniciando“, explica Paulo Dalgalarrondo, neuropsiquiatra da Unicamp.
“Salvo uma imitação, uma simulação, que também existem, há o transe genuíno. É um estado que ainda não está completamente explicado. Psicologicamente, essa pessoa largou todos os seus controles. Os religiosos vão dizer que é uma entidade que desceu nela. Um cientista não diria isto, porque a ele não compete falar sobre as entidades, não é matéria do cientista. Mas ele dirá que esta pessoa está num estado alterado de consciência, sem dúvida”, afirma o psicanalista Roberto Gambini.
E o nosso caboclo boiadeiro? Pai Lilico, que recebe o caboclo em seu corpo, diz que João Chapéu de Couro existiu mesmo, que teria nascido e morrido na Zona da Mata Mineira.
“Ele é muito carismático, atencioso com as pessoas, muito amigo. O mais marcante deste caboclo é a humanidade dele. Ele tem essa capacidade de ter essa relação com toda a comunidade, de ser amigo das pessoas”, diz Pai Lilico.
Pai Lilico não permite que a incorporação do boiadeiro seja filmada. Ela ocorre num quarto, cercada de mistério. Demora, mas o boiadeiro sai.
“A sensação é como se você estivesse todo elétrico, você se sente gigante, a visão começa a falhar. È a hora em que entro no transe”, conta.
Os filhos-de-santo de Pai Lilico também incorporam no terreiro do boiadeiro.
“Isso é o que caracteriza as religiões no Brasil. Você se tornando membro de uma religião, você verá o sagrado diante dos teus olhos”, comenta Gambini.
Domingo que vem! Nossos repórteres vão ao coração da Floresta Amazônica para mostrar o Céu do Mapiá, a Nova Jerusalém criada pelos seguidores do Santo Daime - uma bebida sagrada que provoca o êxtase espiritual.


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27.11.2005
O Santo Daime
No ritual, os homens preparam o sacramento dessa religião. Assim é preparado o Santo Daime – uma bebida que provoca visões e, segundo a crença, conecta o homem com o divino. Tomados pela força da bebida sagrada, os adeptos cantam, bailam e louvam a Deus a noite inteira, até o amanhecer.
A viagem começa em Rio Branco. Num monomotor, sobrevoa-se a floresta até Boca do Acre, uma pequena cidade no estado do Amazonas. Ali, na confluência dos rios Acre e Purus, começa uma nova etapa: nove horas dentro de uma embarcação conhecida como voadeira.
Chega-se à vila Céu do Mapiá, que tem pouco mais de 600 habitantes, durante os preparativos para a Noite de São João, a festa máxima desta doutrina.
As mulheres separam, catam e limpam as folhas que serão usadas na bebida sagrada. Os homens cuidam do cipó, que também deve ser limpo e depois macerado, com golpes compassados, no ritmo dos hinos religiosos.
A mistura de duas espécies vegetais da Amazônia – a folha chacrona e o cipó jagube – é cozinhada por muitas horas, até se transformar no Santo Daime.
Adércio Paz de Oliveira toma daime há 30 anos. Ele guarda um pouco da bebida no altar de sua casa. “A gente toma ele e sente que é um ser divino”, daimista há 30 anos.
O daime exige muito capricho dos adeptos: as roupas rituais, chamadas de "fardas", têm que estar impecáveis. Ilma põe no peito do marido a estrela que simboliza o compromisso assumido com a religião.
O Hinário de São João começou. O Santo Daime é uma doutrina musical – os ensinamentos estão contidos nos hinos que, segundo os adeptos, são recebidos por inspiração do astral, o mundo espiritual.
Os homens bailam de um lado, as mulheres do outro. As fardas simbolizam que os adeptos são soldados da rainha, a soberana virgem mãe que está representada na coroa usada pelas mulheres.
O daime, que é servido a intervalos de mais ou menos quatro horas, leva pouco mais de meia hora para fazer efeito. A experiência é interior, íntima, discreta.
Padrinho Alfredo é o comandante da igreja. Seu rosto voltado para o alto e a expressão dos olhos sugerem que ele está em êxtase espiritual.
O trabalho, que só é encerrado quando ninguém mais está sob o efeito do daime, durou 14 horas. Até o dia nascer.
A doutrina do Santo Daime foi fundada na década de 30 pelo maranhense Raimundo Irineu Serra, que trabalhou no Acre como seringueiro e depois como guarda de fronteiras. Mestre Irineu chamava a atenção pelo tamanho – era um negro forte, de dois metros de altura. Na fronteira com o Peru, Irineu conheceu a bebida indígena ayahuasca, que em língua quéchua, falada pelos antigos incas, significa "cipó das almas".
Certa noite, Irineu tomou a bebida e teve uma visão: uma senhora muito formosa lhe apareceu sentada num trono sobre a lua cheia.“Aí, ela perguntou para ele: ‘ me diz uma coisa, o que você acha que eu possa ser?”, conta Luiz Mendes, daimistra há 43 anos.

Irineu olhou para aquela senhora, pensou, pensou. “Ele disse que ela era uma deusa universal. Foi quando ela disse que a partir daquele dia eles teriam um compromisso”, conta Luiz Mendes.
Irineu não teve dúvida: ele tinha acabado de assumir um compromisso com a virgem soberana mãe, que ele chamou de rainha da floresta e identificou como Nossa Senhora da Conceição, a própria mãe de Jesus. Essa visão deu origem à doutrina do Santo Daime, que é um rogativo: dai-me força, dai-me luz, dai-me amor – é o que se pede ao tomar a bebida. A visão provocada pelo Santo Daime é chamada pelos adeptos de "miração".
“É um estado de desprendimento. No próprio instante em que você se desprende, se desapega das coisas ao redor, naturalmente vai para outra dimensão”, afirma Luiz Mendes.
Em sua miração, mestre Irineu recebeu da virgem mãe um globo terrestre, que simboliza união. Então, ele uniu nesta religião uma bebida sagrada dos índios, a doutrina cristã, e ainda entidades dos cultos afro-brasileiros.
Quem criou essa Nova Jerusalém no meio da floresta foi um discípulo direto de mestre Irineu: o padrinho Sebastião Mota, morto em 1990, pai do atual comandante.
“Eles desenvolveram um trabalho numa altura espiritual de uma capacidade muito fina, bastante elevado, a ponto de tomar o Santo Daime e buscar se conhecer, conhecer seu espírito, conhecer sua origem, conhecer seu caminho”, explica padrinho Alfredo.
Padrinho Sebastião espalhou o Santo Daime pelo Brasil. A primeira igreja criada fora de Rio Branco foi o Céu do Mar, no Rio de Janeiro, em 1982.
O Santo Daime também ganhou adeptos em outros países. Elizabeth veio da Irlanda. "Quando tomo o daime, sinto luzes lindas dentro de mim", diz ela.
Todos vieram para a comemoração dos 80 anos da madrinha Rita, viúva do padrinho Sebastião. Alex Polari, que participou da luta armada durante a ditadura militar, na década de 70, e esteve preso nove anos, hoje é um dirigente dessa religião. Ele diz que a bebida proporciona autoconhecimento.
“Quem buscar o Santo Daime na intenção de obter uma droga não vai encontrar aquilo que o Santo Daime tem para oferecer, que é uma experiência religiosa, mística, uma compreensão espiritual”, adverte Alex.
Em 1987, depois de vários estudos, o governo brasileiro reconheceu e assegurou o direito do consumo religioso da ayahuasca. Mas é preciso alertar: na avaliação da Associação Brasileira de Psiquiatria, uma substância chamada dimetiltriptamina (DMT), contida na folha chacrona, é um agente alucinógeno potente.
“Há casos, principalmente de jovens, adolescentes, que utilizaram ayahuasca e desenvolveram sintomas psicóticos, sintomas do tipo da esquizofrenia. São casos bastante raros, casos de pessoas que já tinham uma predisposição para desenvolver esses sintomas psicóticos. Nesse sentido,a ayahuasca deve ser usada sempre com cuidado, dentro do contexto religioso cultural. As pessoas que já tenham sintomas, ou experiências psicóticas, devem ser desencorajadas de utilizar ayahuasca. Entretanto, para a maior parte das pessoas que participa da religião da ayahuasca, a erva tem um efeito muito positivo, de integração do indivíduo. Isso tem muito sentido para as pessoas que utilizam”, explica Paulo Dalgarrondo, neuropsiquiatra da Unicamp.
O psiquiatra Carlos Renault toma o santo daime há 25 anos. E já atendeu a centenas de pacientes que também usam o daime. “O efeito básico do daime é induzir a pessoa, através de uma alteração de consciência, a um contato reflexivo consigo mesmo”, diz ele.


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11.12.2005
O Catimbó-Jurema
Pode ser no terreiro. Pode ser na mesa. Pode ser no chão. Primeiro, os mestres que vivem no mundo encantado, as cidades da Jurema, são invocados com cantigas chamadas "toques". Então, o mestre parte da sua cidade encantada e desce. Ele assume o corpo do juremeiro e sacode para valer.
“É preciso o êxtase para o mestre chegar, para ele vir trabalhar. E isso se faz não só através do canto, em que eu chamo meu mestre, eu canto para ele, mas também através da bebida. Eu preciso beber a Jurema”, explica Luiz Assunção, doutor em Antropologia e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Luiz Assunção estuda a Jurema há 16 anos. Jurema é uma árvore nativa do agreste e da Caatinga Nordestina. Diz a lenda que essa árvore é sagrada, porque nela a Virgem Maria teria escondido o menino Jesus durante a fuga da sagrada família para o Egito.
A bebida é feita com a casca da Jurema e mais vinho ou pinga. Os outros ingredientes são um segredo que os mais velhos guardam com zelo.
“Ela queima um pouquinho. Pouquinho, mas queima. Dentro dessa garrafa tem jurema. O senhor vai me desculpar, porque eu não posso revelar o segredo”, diz Mestre Geraldo. Para explicar, ele canta: "O trabalho da Jurema, todo mundo quer saber. Como o segredo da abelha, trabalha sem, ninguém ver".
Seu Geraldo, 84 anos, é um dos últimos grandes mestres do Catimbó-Jurema na cidade de Natal, uma linhagem que inclui uma simpática senhora de 87 anos, Mestre Olívia Muniz. Ela canta: “A ciência da jurema mora debaixo do chão. Pertence ao poder da mente. Quem tem a chave dela é o grande rei Salomão”.
“É uma ciência, uma ciência grande, muito grande”, garante Mestre Carol. Juremeiro há mais de 50 anos, ele apresenta seu mestre: Preto José Pilintra. E descreve o que sente quando essa entidade mágica se aproxima. “Eu sinto, eu vejo quando ele chega”, explica.
Zé Pilintra aparece nas imagens desta reportagem supostamente incorporado em um mestre da nova geração, Mestre Marconi, que trabalha na linha da Jurema de Mesa. Um arranjo na mesa simboliza as cidades mágicas da Jurema, onde vivem os mestres invisíveis.
“É a cidade da Jurema, que traz toda a força para os discípulos mestres, que vêm ao redor. A água é um elemento importante, porque é ela quem traz a força da natureza”, esclarece o mestre.
“É um mundo imaginário, sobrenatural, que está em outro plano, no que eles chamam de plano encantado”, afirma o professor Luiz Assunção.
A chamada "gira" de Jurema ocorre dentro de uma casa comandada pelo Mestre Jeová , filho espiritual de Mestre Carol. Durante o ritual, chegam ao terreiro os caboclos juremeiros. A Mestre Luziara é uma princesa da Jurema.
“É como se meu corpo começasse a ficar dormente e eu me apagasse. Não me lembro do que se passa. Para mim, a jurema é sagrada, é preciosa”, observa ela.
O escritor e professor de São Paulo Reginaldo Prandi, especialista em religiões afro-brasileiras, assistiu aos ritos mostrados nesta reportagem.
“Quando os mestres se incorporam, eles têm sempre um objetivo básico, que é atender as pessoas e aplicar certas receitas, que são receitas mágicas, de uma medicina muito antiga, religiosa”, comenta o especialista.
Mestre Melque trabalha com a chamada jurema de chão. O chocalho, ou maracá, e o canto em círculo lembram a origem indígena deste rito. Mas evocam também a época em que os praticantes desta religião eram perseguidos pela polícia.
“O mundo religioso afro-brasileiro sempre foi perseguido, sempre foi visto como uma prática religiosa inferior, como uma prática relacionada ao mal, à feitiçaria”, lembra Luiz Assunção.
“Eu lembro que fui preso muitas vezes“, conta Mestre José Clementino.
Para se esconder da polícia, o rito era realizado com todos abaixados, escondidos na mata. Não se podia tocar tambores; apenas os maracás.
“Muitos têm a Jurema como um bicho, mas a jurema não é nada disso. Ela é paz, luz, amor e caridade”, resume Mestre Geraldo.
“Esse mundo religioso precisa ser respeitado”, defende Luiz Assunção.


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